quinta-feira, 18 de abril de 2013

Crítica: Dançando no Escuro (2000)













"- You can't see, can you?"
"- What is there to see?"

Dirigido por: Lars von Trier. Produzido por: Vibeke Windeløv, Peter Aalbæk Jensen. Roteiro de: Lars von Trier. Estrelando: Björk, Catherine Deneuve, David Morse, Cara Seymour, Peter Stormare.

Em certo momento de Dançando no Escuro, um personagem diz: “Eu não entendo... Porque em musicais eles começam a cantar e dançar do nada?”. É com esse questionamento que o dinamarquês Lars von Trier cria uma obra-prima baseada nos princípios de uma escola cinematográfica conhecida como Dogma 95. Contando com um roteiro ousado, von Trier não poupa o espectador dos cruéis acontecimentos narrados, sem cair no melodrama por um momento que seja. Peculiar no uso da câmera e elegante em seus simbolismos, o longa irrefutavelmente persistirá na mente de quem o assistir.

Escrito pelo próprio von Trier, a película narra a jornada de Selma (Björk), uma imigrante tcheca que vive nos EUA, em 1964. O roteiro gira em torno dos esforços da moça, que possui uma doença genética que destrói sua visão gradativamente, para conseguir dinheiro a fim de operar seu filho, evitando assim que ele também fique cego. Desenvolvida de forma lenta e gradual, a história é ambientada basicamente na fábrica onde Selma trabalha e em sua casa, um trailer alugado no meio da fazenda do policial Bill (David Morse).

Liberando todo seu cabedal fílmico, o diretor começa sua abordagem crua já na primeira cena quando, após um longo prólogo, vemos a paleta dessaturada e o tom quase documental adotado em toda produção. Ousado e surpreendente, o longa aposta na câmera na mão (útil ao exibir as tensões ali presentes) e em cortes nada discretos, que auxiliam no estabelecimento daqueles ambientes como um universo hostil.

O roteiro não se intimida em abusar da metalinguagem, um aspecto curioso do filme. A todo momento, personagens fazem declarações acerca do gênero Musical, culminando numa crítica bem feita à excessiva idealização da realidade presente nessas produções. Assim, o apego da protagonista ao gênero fílmico supramencionado fica latente em falas como “... porque em um musical nada de ruim jamais acontece”.

Muito mais do que um mero recurso narrativo para expor e criticar as mazelas da imigração para os EUA, a personagem central é complexa e multidimensional. Vítima da própria inocência e capaz de tudo para salvar seu filho, ela tem como último lenimento sua paixão pelos musicais hollywoodianos. Ao mesmo tempo em que participa de uma montagem amadora de “A Noviça Rebelde” (as cenas dos ensaios são especialmente interessantes), Selma cria em sua mente números musicais que, destoando do restante da narrativa, servem como válvula de escape para a personagem.

Dessa forma, os realizadores subvertem o gênero musical brilhantemente. O que vemos é a linda voz de Björk acompanhada por coreografias duras, ríspidas, onde sua personagem equaciona o mundo como bem entende. O efeito é o oposto do encantamento gerado por musicais, auxiliado pelo roteiro que não inclui nenhum número antes dos 40 minutos de filme, quando as realidades de todos ali presentes já estão muito bem estabelecidas.

Mesmo retratando a América do Norte, o longa curiosamente foi todo filmado na Europa, em países como Suécia e Dinamarca. Cercado de metáforas que rivalizam com aquelas de Melancolia e Anticristo (além de Dogville e Manderlay, é claro), Dançando no Escuro renderia facilmente páginas e páginas de interpretações filosóficas e até psicanalíticas. Além da clara visão sociológica, onde Selma (e sua melhor amiga Kathy, interpretada por Catherine Deneuve) seriam a representação da desilusão do operariado e dos imigrantes que vão para a América (de uma forma geral) em busca de uma existência superior. Tal desilusão também poderia ser em relação ao fracasso das promessas socialistas, afinal, Selma vem da antiga Tchecoslováquia.

Selma está ficando cega, subtexto claro para sua falta de perspectivas. Afinal, vive num mundo onde sua noção de existência não condiz com a realidade onde está inserida. Assim, há incompatibilidade, ela não é capaz de ver, está cega.

Jamais apresentando qualquer revolta ou agressividade, Selma suporta todas as provações com uma passividade que perturba o espectador. Mas ocultada em sua aparente fraqueza, está a vontade irredutível de operar o filho, o que a acaba levando a extremos inimagináveis. Sua relação com seu filho, ao contrário da que tem com todos, é de uma dureza e severidade incomuns, mostrando-se exigente e intolerante até com pequenas faltas escolares. Quando nada mais pode ser feito, no terceiro ato, ela recusa-se a vê-lo. Ao mesmo tempo em que censura-se pelo egoísmo de ter engravidado (sabendo que transmitiria a doença ao filho) sabe que garantir-lhe a visão é sua máxima expressão de amor materno. Ela quer fazê-lo autônomo.

É impossível não se perguntar por que um filme incrivelmente ríspido atrai tanto o público e a crítica. Uma boa explicação seria sua capacidade de tocar aspectos masoquistas e melancólicos da plateia. Segundo Freud, há três tipos de masoquismo: o erógeno, o feminino e o moral. O primeiro é o mais conhecido, pois envolve as práticas sexuais hoje glamourizadas pelo pavoroso livro 50 Tons de Cinza. Na melancolia (líquido escuro, do grego), vê-se uma agressão voltada para o próprio objeto por parte do superego. O sujeito é incapaz de voltar sua agressão para o exterior que o massacra, agredindo a si mesmo. O resultado leva frequentemente ao suicídio.

Sendo predominantemente moral, o masoquismo de Selma também tem uma face erótica. Sua relação com o policial Bill (um dos responsáveis, junto com ela mesma, pelo seu trágico destino), é completamente submissa, pois ela se dobra aos desejos dele, não compondo nenhuma reação contra suas investidas. Eis um bom modelo de relação sado-masoquista.

Ao final, vemos uma frase aparecer na tela, mostrando que aquele só será o destino dos que deixarem ser. “Eles dizem que essa é a última canção, eles não nos conhecem, sabe. É apenas a última canção, se deixarmos que seja.” (tradução minha). Assim, o mesmo diretor que massacrou seu público oferece uma poderosa e atemporal reflexão. Afinal, somos donos de nossas próprias existências.

Por Bernardo Argollo 

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