"- You can't see, can
you?"
"- What is there to see?"
Dirigido
por: Lars von Trier. Produzido por: Vibeke Windeløv, Peter Aalbæk Jensen. Roteiro
de: Lars von Trier. Estrelando: Björk, Catherine Deneuve, David Morse, Cara
Seymour, Peter Stormare.
Em certo momento de Dançando no Escuro, um personagem diz: “Eu não entendo... Porque em musicais eles
começam a cantar e dançar do nada?”. É com esse questionamento que o
dinamarquês Lars von Trier cria uma obra-prima baseada nos princípios de uma
escola cinematográfica conhecida como Dogma 95. Contando com um roteiro ousado,
von Trier não poupa o espectador dos cruéis acontecimentos narrados, sem cair
no melodrama por um momento que seja. Peculiar no uso da câmera e elegante em
seus simbolismos, o longa irrefutavelmente persistirá na mente de quem o
assistir.
Escrito pelo próprio von
Trier, a película narra a jornada de Selma (Björk), uma imigrante tcheca que
vive nos EUA, em 1964. O roteiro gira em torno dos esforços da moça, que possui
uma doença genética que destrói sua visão gradativamente, para conseguir
dinheiro a fim de operar seu filho, evitando assim que ele também fique cego.
Desenvolvida de forma lenta e gradual, a história é ambientada basicamente na
fábrica onde Selma trabalha e em sua casa, um trailer alugado no meio da
fazenda do policial Bill (David Morse).
Liberando todo seu cabedal
fílmico, o diretor começa sua abordagem crua já na primeira cena quando, após
um longo prólogo, vemos a paleta dessaturada e o tom quase documental adotado
em toda produção. Ousado e surpreendente, o longa aposta na câmera na mão (útil
ao exibir as tensões ali presentes) e em cortes nada discretos, que auxiliam no
estabelecimento daqueles ambientes como um universo hostil.
O roteiro não se intimida em
abusar da metalinguagem, um aspecto curioso do filme. A todo momento,
personagens fazem declarações acerca do gênero Musical, culminando numa crítica
bem feita à excessiva idealização da realidade presente nessas produções.
Assim, o apego da protagonista ao gênero fílmico supramencionado fica latente
em falas como “... porque em um musical
nada de ruim jamais acontece”.
Muito mais do que um mero
recurso narrativo para expor e criticar as mazelas da imigração para os EUA, a
personagem central é complexa e multidimensional. Vítima da própria inocência e
capaz de tudo para salvar seu filho, ela tem como último lenimento sua paixão
pelos musicais hollywoodianos. Ao mesmo tempo em que participa de uma montagem
amadora de “A Noviça Rebelde” (as cenas dos ensaios são especialmente
interessantes), Selma cria em sua mente números musicais que, destoando do
restante da narrativa, servem como válvula de escape para a personagem.
Dessa forma, os realizadores
subvertem o gênero musical brilhantemente. O que vemos é a linda voz de Björk
acompanhada por coreografias duras, ríspidas, onde sua personagem equaciona o
mundo como bem entende. O efeito é o oposto do encantamento gerado por
musicais, auxiliado pelo roteiro que não inclui nenhum número antes dos 40
minutos de filme, quando as realidades de todos ali presentes já estão muito
bem estabelecidas.
Mesmo retratando a América
do Norte, o longa curiosamente foi todo filmado na Europa, em países como
Suécia e Dinamarca. Cercado de metáforas que rivalizam com aquelas de Melancolia e Anticristo (além de Dogville
e Manderlay, é claro), Dançando no Escuro renderia facilmente
páginas e páginas de interpretações filosóficas e até psicanalíticas. Além da
clara visão sociológica, onde Selma (e sua melhor amiga Kathy, interpretada por
Catherine Deneuve) seriam a representação da desilusão do operariado e dos
imigrantes que vão para a América (de uma forma geral) em busca de uma
existência superior. Tal desilusão também poderia ser em relação ao fracasso
das promessas socialistas, afinal, Selma vem da antiga Tchecoslováquia.
Selma está ficando cega,
subtexto claro para sua falta de perspectivas. Afinal, vive num mundo onde sua
noção de existência não condiz com a realidade onde está inserida. Assim, há
incompatibilidade, ela não é capaz de ver, está cega.
Jamais apresentando qualquer
revolta ou agressividade, Selma suporta todas as provações com uma passividade
que perturba o espectador. Mas ocultada em sua aparente fraqueza, está a
vontade irredutível de operar o filho, o que a acaba levando a extremos
inimagináveis. Sua relação com seu filho, ao contrário da que tem com todos, é
de uma dureza e severidade incomuns, mostrando-se exigente e intolerante até
com pequenas faltas escolares. Quando nada mais pode ser feito, no terceiro
ato, ela recusa-se a vê-lo. Ao mesmo tempo em que censura-se pelo egoísmo de
ter engravidado (sabendo que transmitiria a doença ao filho) sabe que
garantir-lhe a visão é sua máxima expressão de amor materno. Ela quer fazê-lo
autônomo.
É impossível não se
perguntar por que um filme incrivelmente ríspido atrai tanto o público e a
crítica. Uma boa explicação seria sua capacidade de tocar aspectos masoquistas
e melancólicos da plateia. Segundo Freud, há três tipos de masoquismo: o
erógeno, o feminino e o moral. O primeiro é o mais conhecido, pois envolve as
práticas sexuais hoje glamourizadas pelo pavoroso livro 50 Tons de Cinza. Na melancolia (líquido escuro, do grego), vê-se
uma agressão voltada para o próprio objeto por parte do superego. O sujeito é
incapaz de voltar sua agressão para o exterior que o massacra, agredindo a si
mesmo. O resultado leva frequentemente ao suicídio.
Sendo predominantemente
moral, o masoquismo de Selma também tem uma face erótica. Sua relação com o
policial Bill (um dos responsáveis, junto com ela mesma, pelo seu trágico
destino), é completamente submissa, pois ela se dobra aos desejos dele, não
compondo nenhuma reação contra suas investidas. Eis um bom modelo de relação
sado-masoquista.
Ao final, vemos uma frase
aparecer na tela, mostrando que aquele só será o destino dos que deixarem ser. “Eles dizem que essa é a última canção, eles
não nos conhecem, sabe. É apenas a última canção, se deixarmos que seja.”
(tradução minha). Assim, o mesmo diretor que massacrou seu público oferece uma
poderosa e atemporal reflexão. Afinal, somos donos de nossas próprias
existências.
Por Bernardo Argollo
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