“Observe, Lord Burghley, I am
married... to England”.
Dirigido
por: Shekhar Kapur. Produzido por: Tim Bevan, Eric Fellner e Alison Owen.
Roteiro de: Michael Hirst. Montado por: Jill Bilcock. Fotografia de: Remi
Adefarasin. Música de: David Hirschfelder. Estrelando: Cate Blanchett, Geoffrey
Rush, Christopher Eccleston, Joseph Fiennes, John Gielgud e Richard
Attenborough.
Livremente baseado nos
primeiros anos do reinado de uma das monarcas mais notáveis da história
ocidental, Elizabeth inova justamente
por focar em um período geralmente ignorado pelo cinema em se tratando desta.
Quando muitos focaram suas produções na derrota da Invencível Armada Espanhola
em 1588, o diretor indiano Shekhar Kapur (que depois continuaria a história em
2007 com Elizabeth: A Era de Ouro)
preferiu retratar o jogo político que culminou com a ascensão de Elizabeth e a
formação de sua personalidade através da difícil e trabalhosa missão de se
manter no poder e de defender o país e a si mesma das intermináveis ameaças
internas e externas.
Em 1558, a rainha católica
Mary I morre de câncer, deixando o trono para sua meia-irmã Elizabeth (Cate
Blanchett). Alçada ao poder, Elizabeth é cortejada por inúmeros pretendentes e
precisa lidar com inúmeras ameaças ao seu reino. Assim, deixa de ser uma moça
inocente e ingênua, já que isto é incompatível com a malícia necessária para
governar e dominar os homens ao seu redor, para ser uma mulher altiva e
poderosa. Tal transformação é o arco dramático do longa, sendo conduzida com
uma inteligência visual inigualável.
Ao subir ao trono, Elizabeth
tem em suas mãos uma nação endividada e sem poderio bélico, cuja única solução
lógica seria uma aliança com outra nação, na forma de um casamento. Esta opção,
contudo, não está nos planos da jovem, que apaixonada pelo Lord Robert Dudley,
não deseja desposar nenhum dos homens que a cortejam. Após descobrir que Dudley
é casado, Elizabeth se desilude e acaba descobrindo que o limite entre sua vida
pública e privada é deveras tênue.
Numa cena genial, determinado
personagem afirma “O corpo e a pessoa de Sua Majestade não são mais propriedade
dela. Eles pertencem ao Estado”. Logo após, vemos Elizabeth e Dudley fazendo
amor em uma cama com dossel coberto por um tecido com estampa de olhos, numa
metáfora brilhante acerca da condição de um monarca. Em nenhum momento ele está
realmente sozinho, não possui vida pessoal.
Cercado por pistas visuais
que definem a história psicologicamente, o diretor de fotografia Remi
Adefarasin inteligentemente faz com que as cores usadas por Elizabeth
silenciosamente espelhem seu arco dramático, de forma simultaneamente óbvia e
subliminar. Antes de se tornar rainha, a moça veste roupas com tons neutros,
como verdes claros e pastéis. Em dourado, Elizabeth é coroada. O carpete sobre
o qual ela anda é do mesmo vermelho ostentado pelos cortesãos que a rodeiam.
Esse vermelho não é claro, é profundo, rico, impregnado com uma aura de poder.
Uma cor que ao mesmo tempo seduz, perturba e provoca.
Numa cena que visualmente captura
o jogo político, a rainha se encontra com seus cortesãos e conselheiros. Os
enormes chapéus pretos de todos os homens que a cercam encurralam-na e diminuem
seu tamanho. O poderoso vermelho de sua roupa, entretanto, energiza o espaço e
domina o ambiente. Tudo isso aliado a uma mis-en-scène
que ilustra perfeitamente o desempenho crescente de Elizabeth em seu
discurso e a enquadramentos que representam
a “situação” desta no jogo que se segue. Se no início da cena a monarca é vista
sempre por um ângulo alto (em belíssimos planos plongé), no final ela situa-se na linha dos olhos de seus “oponentes”
e no ponto mais forte do quadro.
A atuação fenomenal de Cate
Blanchett e os diálogos sensacionais ilustram com perfeição o estabelecimento
de um mito. Em certo momento, ao refletir sobre a própria existência e
propósitos, Elizabeth ouve de seu conselheiro Walsingham que “Para reinar
supremos, todos os homens precisam de algo maior que eles mesmos para adorar...
Eles devem ser capazes de tocar o divino aqui da terra”. Assim Elizabeth, de
roxo, ajoelha-se diante de uma estátua de mármore de um ícone cristão. “Ela
tinha tal poder sobre os corações dos homens. Eles morreram por ela”. Então,
numa sacada brilhante, Walsingham diz: “Eles não encontraram nada para
substituí-la”. É o mito em sua essência.
Numa brilhante exposição
visual, vemos uma mulher se transformar em ícone. Um ritual de abordagem quase
religiosa começa: uma dama de companhia corta o cabelo da Rainha. Imagens de sua
trajetória percorrem a tela. É o ritual da preparação de um ídolo (“Eu me
tornei uma virgem”). O quadro dá um fade-in
para branco e dele emerge uma figura mais ícone do que humana. Como que para um
casamento, suas damas de companhia ajoelham-se em seus vestidos brancos e véus.
É uma transformação forjada por pura obstinação e diligência. Elizabeth sobe a
escada rumo a seu trono sobre um carpete da cor do sangue e do poder. A Rainha
vira seu semblante branco e olha para a frente, encarando-nos.
No final, foi ela quem se
tornou a mais esperta de todos.
Por Bernardo Argollo
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