domingo, 16 de dezembro de 2012

Crítica: O Hobbit - Uma Jornada Inesperada (2012)













Home is now behind you. The world is ahead.”

Título original: The Hobbit – An Unexpected Journey. Dirigido por: Peter Jackson. Produzido por: Carolynne Cunningham, Zane Weiner, Fran Walsh, Peter Jackson. Roteiro de: Fran Walsh, Philippa Boyens, Peter Jackson, Guillermo del Toro. Montado por: Jabez Olssen. Fotografia de: Andrew Lesnie. Música de: Howard Shore. Estrelando: Martin Freeman, Ian McKellen, Richard Armitage, James Nesbitt, Ken Stott, Cate Blanchett, Ian Holm, Christopher Lee, Hugo Weaving, Andy Serkis, Manu Bennett.

Parte 1 – Uma Jornada Inesperada

Não existem palavras para descrever a sensação de retornar à terra-média depois de quase dez anos. A magnitude do universo é tanta que chega a mascarar os defeitos de uma produção baseada em uma história um tanto simples e com pouca informação para três filmes. O roteiro “convida” personagens, enxerta outros (chega a criar um sub-vilão) e extende a história ao máximo na tentativa de engrandecê-la. Mas tudo isso enfraquece diante da seguinte frase: é a terra-média.

Baseado em um livro de tom leve e inocente, o roteiro acompanha as aventuras de Bilbo Bolseiro sessenta anos antes dos acontecimentos vistos em O Senhor dos Anéis. Juntamente com Gandalf e a companhia de Thorin Escudo de Carvalho, Bilbo se envolve numa missão arriscada: recuperar a morada e o tesouro dos anões, roubados pelo cruel dragão Smaug.

O primeiro ponto que chama atenção na construção do roteiro é o excesso de anões. Com exceção do príncipe Thorin e do ancião Balin, os anões são praticamente iguais. A não ser pelas diferenças físicas, é impossível diferenciá-los. Eles não tem personalidade alguma e não se desenvolvem enquanto personagens. Isso é muito significativo, pois estamos falando de onze em um universo de treze. Cortar cinco anões faria um bem imenso à narrativa, mas infelizmente a ânsia de ser fiel ao livro (como se isso fosse uma coisa louvável) e de agradar ao fãs acaba sendo prejudicial.

Por outro lado, são tomadas liberdades criativas para melhorar a história e torna-lá mais palatável ao público. Personagens como Saruman (Lee) e Galadriel (Blanchett) são introduzidos na história de maneira conveniente e benéfica. Apesar de terem sido criados depois da publicação do livro O Hobbit, em 1937, eles na verdade fazem parte da história, apenas não são citados. O processo criativo de Tolkien é complexo, com muitos aspectos pertinentes às histórias sendo citados apenas em apêndices, por exemplo.

O mago Radagast é um personagem bobo e dispensável, além de extremamente caricato. Ele não acrescenta nada ao filme. Suas cenas sempre tendem para o pastelão (a corrida no trenó de coelhos) e sua única ação significativa, que é alertar sobre o Necromante que se instalou nas ruínas de Dol Gundur, poderia ser executada por outro personagem sem grandes prejuízos.

Martin Freeman está irretocável como Bilbo. Favorecido pela própria estrutura da narrativa, ele constitui um personagem infinitamente mais interessante que Frodo, protagonista de O Senhor dos Anéis. Ao contrário da apatia e inocência do seu parente mais jovem, o Bilbo de Freeman sabe ser simpático, astuto, maldoso e carismático na medida certa.

Já que o dragão Smaug praticamente inexiste nesse primeiro episódio, nada mais adequado que criar um antagonista. Apesar de se tornar repetitivo e prejudicar o ritmo da narrativa, o orc gigante Azog (que prejudicara anões em uma batalha) é um interessante contraponto, na ausência do vilão principal. E falando em criaturas digitais geradas por captação de movimentos, impossível não citar Gollum. Em seu retorno à telona, a criatura está ainda mais impressionante que em O Senhor dos Anéis, estando ainda mais detalhada e expressiva (se é que isso é possível).

A trilha sonora composta por Howard Shore é boa e funcional. Peca, contudo, por ter seus melhores momentos justamente quando evoca os temas originais de O Senhor dos Anéis. A música cantada pelos anões, ao contrário do que o trailer leva a supor, não acrescenta ao filme e soa um tanto boboca.

Indeciso entre o tom mais inocente da história original e o tom mais sombrio e urgente de O Senhor dos Anéis, o diretor de fotografia Andrew Lesnie alterna tons sombrios e cores vivas. É imperioso que as duas sequências sejam mais constantes quanto à fotografia e sutis nas mudanças. Resta-nos aguardar o próximo episódio sem medo de decepção. Afinal, esta inexistirá. Pois trata-se da terra-média. Não há para onde correr. A magnitude e a magia deste universo empalidecem quaisquer tropeços.

Parte 2 – Um Framerate Inesperado

Muito se fala sobre os 48 quadros por segundo adotados por Peter Jackson. Uma análise real está além dos objetivos desse texto, pois além de incluir componentes subjetivos exige que o leitor possua conhecimentos prévios de cinematografia, estética e linguagem cinematográfica.

É bem razoável dizer que a imagem chega a ser perturbadora de tão perfeita, sendo possível ver cada poro, fio de barba ou cabelo e fibra das roupas. É natural, contudo, que a tecnologia ainda precisa ser aprimorada. Alguns planos parecem estar ligeiramente “acelerados” e alguns movimentos causam uma sensação de estranhamento. As cenas de ação não apresentam um borrão sequer. É meio esquisito estar, literalmente, absorvendo o dobro de informação por segundo. Assim como a linguagem 3D ainda engatinha, a nova linguagem cinematográfica a 48 fps também está incipiente. Fico ansioso pra ver o que um diretor como Martin Scorsese fará com o recurso.

Falando em 3D, é triste constatar que Jackson não sabe usá-lo. Realmente, são poucos que sabem. Revelando o mesmo desconhecimento de linguagem exibido por Tim Burton em Alice no País das Maravilhas, ele comete erros básicos como adotar uma profundidade de campo pequena (deixar o fundo desfocado) em alguns planos, algo que não deve ser feito em filmes tridimensionais, pois contraria a própria lógica do campo 3D. Como se não bastasse, ele abusa de elementos como mudança rápida de foco (rack focus), como no plano que mostra Gandalf e Galadriel. Em filmes tridimensionais tudo precisa estar visível do primeiro ao último elemento. Isso permite que o cérebro do espectador crie o foco, o que evita dores de cabeça.

Enfim, estamos diante de uma nova estética, de um avanço técnico que culminará na ascensão de uma nova linguagem e de uma nova fotografia e cinema. Só o tempo revelará as verdadeiras implicações artísticas e se o formato perdurará. Resta-nos rever nossos conceitos e, principalmente, não aceitar algumas ideias que provavelmente começarão a surgir, como a de que filmes rodados a 24 quadros sejam inferiores, por exemplo. Na contemporaneidade já é comum ouvir que filmes em preto e branco são “chatos”. Tal consideração é equivocada e afasta as atuais e futuras gerações de cinéfilos dos clássicos universais da Sétima Arte.

Por Bernardo Argollo

P.S.: Recomendo a leitura deste artigo, escrito pelo cineasta João Papa e publicado no site do meu professor Pablo Villaça. É muito esclarecedor acerca das implicações do novo formato, bem como explica todos os aspectos envolvidos de maneira simples e didática. Fundamental para o leitor interessado em se aprofundar.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Crítica: Era Uma Vez no Oeste (1968)













What are we going to do with this one, Frank?
Título original: C'era una volta il West. Dirigido por: Sergio Leone. Produzido por: Fulvio Mosella, Bino Cicogna. Roteiro de: Sergio Donati, Sergio Leone. Montado por: Nino Baragli. Fotografia de: Tonino Delli Colli. Música de: Ennio Morricone. Estrelando: Claudia Cardinale, Henry Fonda, Jason Robards, Charles Bronson.

De modo a aproveitar o sucesso dos filmes western americanos, que estavam em baixa na década de 1960, o cinema europeu produziu uma obra única. Fazendo parte do gênero conhecido como western spaghetti, como são chamados os filmes desse tipo realizados por diretores italianos, Era Uma Vez no Oeste hoje é aclamado como um dos maiores filmes de todos os tempos e como o melhor do seu segmento. Houve um erro na tradução do título em italiano para o inglês e, posteriormente, para o português. O título original significa “Era Uma Vez o Oeste”, isto é, o fim do Oeste como era conhecido através da chegada do progresso.

Com pouco diálogo e muita tensão, o filme acompanha quatro personagens pricipais: o bandido Cheyenne, a ex-prostituta Jill McBain, o matador de aluguel Frank e um homem misterioso que sempre carrega uma gaita. Os quatro acabam se cruzando quando um barão ferroviário contrata Frank para matar Brett McBain, dono de terras que valorizar-se-iam com a chegada da ferrovia. A produção foi rodada no deserto de Almeria, na Espanha, no deserto de Utah e nos famosos estúdios Cinecittà (os interiores), na Itália (mesmo local onde foram gravadas produções como Ben-Hur, Cleópatra e o recente seriado Roma, da HBO).


Dono de um estilo refinadíssimo, Sergio Leone explora com maestria recursos como diferentes profundidades de campo e os quatro pontos de fuga da tela. Causando o máximo de impacto possível no espectador, a obra explode no momento certo e se consagra como a maior ópera de violência (nas palavras do próprio diretor) da história do cinema. A trilha sonora é incrível, soando ao mesmo tempo melancólica e evocativa, sendo capaz de traduzir perfeitamente as tensões que afloram e as transformações em curso.

Poucas películas possuem uma quantidade tão grande de sequências antológicas como essa. Além da sequência de abertura, destacam-se a chacina da família irlandesa (ponto de partida para a trama), o plano sem cortes que mostra a chegada de Jill à Tombstone, o ataque de Cheyenne ao trem, a vila em construção... A fotografia acerta por situar todos os personagens na mesma realidade (leia-se: não representar mocinhos limpos e bandidos sujos e com roupas esfarrapadas). Além disso, o diretor de fotografia Tonino Delli Colli consegue valorizar cada rosto com seus closes, algo que nem sempre é atingido no cinema.


As atuações são nada menos que incríveis e memoráveis. Os olhos azuis de Henry Fonda formam um contraste sensacional com sua frieza e seu rosto envolto em sombras (destaque para a cena da chacina, em que um close magnífico contrapõe os dois elementos evidenciando os olhos do ator e a sombra produzida pelo chapéu). Cláudia Cardinale está linda como Jill McBain e basta um olhar de Charles Bronson para sabermos que aquela é uma pessoa a quem não se deve aborrecer.


Dos 165 minutos de projeção, existem 30 minutos de diálogo, no máximo. As falas são secas, curtas e sintéticas. Simplesmente fenomenais. Alguns podem, com razão, até taxar o filme de lento e arrastado, mas é indiscutível que foi construído com muito cuidado e suspense. Um fato interessante é que Leone não utilizou storyboards (algo impensável em Hollywood), alegando que todas as cenas já estavam construídas em sua mente.

Em meio a travellings, planos abertos seguidos de closes fechadíssimose uma violência operística e coreografada, vê-se o ápice de um realizador que, acima de tudo, tem estilo e linguagem apurados. Um filme para quem ama o cinema. Sem dúvida.


Por Bernardo Argollo

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sábado, 17 de novembro de 2012

Crítica: A Saga Crepúsculo | Amanhecer - Parte 2 (2012)













“Immortality becomes you.”

Título original: The Twilight Saga – Breaking Dawn Part 2. Dirigido por: Bill Condon. Produzido por: Wyck Godfrey, Karen Rosenfelt, Stephenie Meyer. Roteiro de: Melissa Rosenberg. Montado por: Virginia Katz. Fotografia de: Guillermo Navarro. Música de: Carter Burwell. Estrelando: Kristen Stewart, Robert Pattinson, Taylor Lautner, Mackenzie Foy, Billy Burke, Kellan Lutz.

Longe de ser tão pavoroso quanto os quatro longas anteriores, Amanhecer – Parte 2 conta, pelo menos, com uma história para contar e alguns novos e interessantes personagens. Assim, afasta-se do romance que era seu único e exclusivo foco. Chega a ser um bom filme, considerando-se que alguma qualidade é sempre melhor que qualidade nenhuma.

O roteiro, novamente escrito por Melissa Rosenberg, narra as consequencias de um mal-entendido que leva os Volturi (um tipo de realeza vampiresca) a acreditarem que os Cullen desrespeitaram uma antiga lei da espécie. Concomitantemente, acompanha-se os resultados da transformação da protagonista em vampira e do polêmico imprinting do lobisomem Jacob com Renesmee (que nome lindo, não é?), a filha do casal principal, concebida, inicialmente, com pobres efeitos visuais.

Contando com uma campanha publicitária copiada de franquias demasiado superiores, o filme acerta ao adotar um tom mais tenso e urgente. Uma transformação em vampiro nunca fez tão bem a alguém como fez a Bella. Deixando para trás seu semblante depressivo e sua postura apática (beirando o suicida), Bella torna-se uma figura mais digerível, enquanto explora suas novas capacidades e aprende a lidar com seu dom.

Mesmo que (finalmente!) o público tenha um enredo para acompanhar, ainda tem que encarar uma breguíssima cena de sexo entre Bella e Edward. Abusando de todos os clichês possíveis e imagináveis (como o uso da contraluz e de planos-detalhe exibindo mãos e coxas), a cena é a síntese do que realmente está levando milhões de adolescentes frenéticas ao cinema. Deve-se ressaltar, contudo, que nunca é tarde para evoluir um pouco. Desta vez, Jacob espera quinze minutos para tirar a camisa, ao invés dos quinze segundos do episódio anterior.

Alguns estereótipos preconceituosos trazem à tona a ignorância da incompetentíssima Stephenie Meyer em relação a outras culturas. Note que é sugerido, por exemplo, que os irlandeses são bêbados. E essa é só uma das insinuações do roteiro (copiadas, fielmente, do livro).

A produção surpreende positivamente com cenas cruéis, mostrando que os realizadores tem um mínimo de ousadia narrativa. Ainda assim, os cortes abruptos não deixam claro como o pequeno grupo reunido pelos Cullen foi capaz de subjugar o numeroso exército dos Volturi. O clímax é, sem dúvida, bem executado e funciona razoavelmente, mas evidencia a covardia e a obviedade da escritora e da roteirista ao simplesmente anular momentos importantes a fortíssimos. Além disso, deixa pontas soltas e simplesmente não resolve a trama.

É impossível escrever sobre Amanhecer – Parte 2 e não citar a impagável atuação de Michael Sheen como o vilão Aro. Apoiado numa construção extremamente caricata, o ator é incrível. Ele se diverte imensamente a cada cena, pouco se importando com o filme. Ele está claramente tirando sarro de todo mundo, tomando as decisões como ator que acha adequadas, completamente descomprometido com o entorno. É a melhor atuação de todo o filme.

Tropeços como o óbvio uso de Jasper e Alice como deus ex machina, como a falta de aprofundamento na própria mitologia (perdoável, afinal não se pode esperar mais de Meyer, não é mesmo?) e como a insistência em diálogos expositivos e melosos que jamais ajudaram a solidificar o romance do casal Bella e Edward não invalidam as boas decisões criativas e a direção consistente desenvolvida por Bill Condon nesse último capítulo. Cabe ao espectador decidir se vale a pena enfrentar quatro longas como os anteriores para chegar nesse, que, surpreendentemente, tem alguma qualidade.

Por Bernardo Argollo

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Crítica: E o Vento Levou (1939)













“As God is my witness, as God is my witness they're not going to lick me. I'm going to live through this and when it's all over, I'll never be hungry again. No, nor any of my folk. If I have to lie, steal, cheat or kill. As God is my witness, I'll never be hungry again.”

Título original: Gone with the Wind. Dirigido por: Victor Fleming, Sam Wood e George Cukor. Produzido por:  David O. Selznick. Roteiro de: Sidney Howard. Montado por: Hal C. Kern, James E. Newcom. Fotografia de: Ernest Haller, Lee Garmes. Música de: Max Steiner. Estrelando: Clark Gable, Vivien Leigh, Leslie Howard, Olivia de Havilland, Hattie McDaniel, Butterfly McQueen.

Passaram-se 73 anos. E mesmo os indivíduos de repertório mais limitado já ouviram falar de uma tal de Scarlett que, com Deus por sua testemunha, jurou que nunca mais passaria fome novamente. Hollywood sempre foi hábil ao criar produções que atinjam a todos os públicos, ultrapassando as barreiras do tempo, marcando gerações e maximizando os lucros.


Maior bilheteria da história (corrigida pela inflação), E o Vento Levou acompanha a jornada de Scarlett O’Hara (Vivien Leigh) e seus encontros e desencontros amorosos incluindo Ashley Wilkes (Leslie Howard) e Rhett Butler (Clark Gable). Quando estoura a Guerra Civil Americana (1861-1865), vê-se a desconstrução do universo da moça e sua posterior reconstrução, constituindo uma tocante história de superação. Tudo isso embalado por uma trilha sonora memorável.


Frequentemente exibido (com cortes) na programação noturna de emissoras, esse longa de quase quatro horas consegue, mesmo na contemporaneidade, manter o espectador atento. Ainda que excessivamente romântico, o roteiro acerta por articular personagens principais complexos com personagens secundários unidimensionais (ou seja, totalmente bons ou totalmente maus). O recurso é útil, pois torna a narrativa universal, atingindo ao máximo possível de espectadores e propondo discussões acerca das atitudes ambíguas das personagens centrais.

Há um cuidado admirável na concepção dos figurinos e cenários. Scarlett começa vestindo branco, logo no primeiro ato. Depois usa variadas cores, como verde e vermelho, simbolizando, respectivamente, esperança e pecado. E, finalmente, finda a narrativa de preto. Se o uso de tais cores tão explicitamente em situações-chave não soa sofisticado como linguagem, é louvável por explorar um recurso incipiente para a época (a cor).


O apuro técnico também pode ser sentido na cena do incêndio em Atlanta. Num período em que não havia CGI e sequer chroma key, os produtores não tiveram outra opção senão criar um verdadeiro incêndio. Matéria-prima? Os cenários de King Kong (1933). Mas é realmente lastimável que um filme desses tenha sido feito na era do cinema 4x3 (1.37:1). Em várias cenas, ele “grita” por uma razão de aspecto maior, obrigando os diretores a serem bem óbvios em suas composições de quadro enquanto poderiam ser mais sutis.

Outra característica que não sobreviveu ao avanço do cinema e da linguagem cinematográfica foi a estrutura de ópera em que E o Vento Levou se apóia. Com direito a overture, intermission, entr’acte e exit music. Talvez por ser mais adequada a apresentações não-projetáveis, tal construção soa, hoje, deslocada e desinteressante.

Em meio à trilha sonora evocativa e ao excesso de fade-outs, há um enfoque na questão da ligação do homem com a terra (com letra minúscula mesmo). Tais valores são endeusados pela obra, pois, afinal, a terra é a única coisa que restou para a personagem principal, é dela que ela deve tirar força para continuar vivendo. Assim, esse filme eterno passa sua mensagem há mais de sete décadas.


Por Bernardo Argollo

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terça-feira, 23 de outubro de 2012

Crítica: Fonte da Vida (2006)













“Then you shall take this ring to remind you of your promise. You shall wear it when you find Eden, and when you return, I shall be your Eve. Together we will live forever.”

Título original: The Fountain. Dirigido por: Darren Aronofsky. Produzido por: Arnon Milchan, Iain Smith, Eric Watson. Roteiro de: Darren Aronofsky. Montado por: Jay Rabinowitz. Fotografia de: Matthey Libatique. Estrelando: Hugh Jackman, Rachel Weisz, Ellen Burstyn.

O que falar de uma produção que possui, entre outras coisas, roteiro complexo, mau desempenho nas bilheterias e opiniões divergentes entre os críticos? A princípio, é nevrálgico salientar que não é um filme para qualquer um. Não há didatismo e, se você não entendeu algo, o roteiro não vai explicar com um final mastigado ou com diálogos expositivos. O espectador deve parar, pensar e, se possível, assisti-lo novamente. Quem não presta atenção sai com a sensação de nada ter entendido. É muita simbologia e pouca linearidade, numa trama em que realidade e fantasia se confundem.


É complicado até resumir a trama! Basicamente, ela contempla três histórias paralelas ambientadas em épocas diferentes, com o mesmo objetivo central. No ano 2000 a mulher do pesquisador Tommy Creo está prestes a morrer, e ele procura desesperadamente a cura para o câncer que a devora. Em 1500, o conquistador Tomas Creo busca a árvore da vida (como descrita na bíblia), afim de viver para sempre ao lado da rainha Isabel. Unindo essas duas histórias, em 2500, o astronauta Tom busca respostas para as questões fundamentais da existência. O filme aborda aspectos filosóficos relacionados à existência, bem como referências a várias doutrinas religiosas e à concepção de cosmogonia da cultura maia.

O diretor tenta suavizar as mudanças abruptas de tom com o uso de raccords (encaixes entre os planos através, geralmente, de formas semelhantes, evitando que o corte fique muito evidente). O recurso funciona, deixando as transições entre os universos fluidas e naturais.


Nada disso seria possível sem o talento inquestionável de Hugh Jackman e Rachel Weisz. No filme, vê-se um Jackman muito maduro, dominando com maestria toda carga emocional que seu personagem exige. Rachel Weisz, por sua vez, apresenta-se magnânima em cada frame que aparece. É incrível a capacidade que ela possui de rir e chorar simultaneamente, sem que nenhuma das duas ações soe falsa ou forçada. Destaque para a cena em que ela diz a mesma frase duas vezes, representando duas personagens diferentes. Tal cena é tocante e expõe todo o seu talento e seu alcance dramático incrível.

A produção aposta numa sutileza visual, baseada em uma fotografia competente sempre em tom amarelado. Dessa forma, a simplicidade técnica alia-se à complexidade do roteiro construindo um todo coeso. A trilha sonora também é importantíssima para o desempenho da produção, apresentando a incrível capacidade de aguçar os nossos ouvidos nos momentos mais emblemáticos.

Os círculos, conceito recorrente na fotografia do filme, são úteis ao demonstrar que a morte não é o fim da vida, e sim o reinício desta, constituindo um ciclo. É elegante e eficaz a maneira como o roteiro aborda a necessidade de se aceitar a morte como parte de existência. Isso fica evidente no plano que mostra o astronauta Tom indo em direção à estrela Xibalba. Talvez seja essa visão otimista e filosófica que deixe a película racional demais, fria demais. O fracasso de bilheteria corrobora esse fato.


Por Bernardo Argollo

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quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Crítica: Réquiem Para um Sonho (2000)













“I'm somebody now, Harry. Everybody likes me. Soon, millions of people will see me and they'll all like me. I'll tell them about you, and your father, how good he was to us. Remember? It's a reason to get up in the morning. It's a reason to lose weight, to fit in the red dress. It's a reason to smile. It makes tomorrow all right. What have I got Harry, hm? Why should I even make the bed, or wash the dishes? I do them, but why should I? I'm alone. Your father's gone, you're gone. I got no one to care for. What have I got, Harry? I'm lonely. I'm old.”

Título original: Requiem for a Dream. Dirigido por: Darren Aronofsky. Produzido por: Eric Watson, Palmer West. Roteiro de: Darren Aronofsky, Hubert Selby Jr. Montado por: Jay Rabinowitz. Fotografia de: Matthey Libatique. Estrelando: Ellen Burstyn, Jared Leto, Jennifer Connelly, Marlon Wayans.

Parte 1: O sonho

Assistir Réquiem para um Sonho é levar um soco no estômago, tamanho é o desgaste emocional que o filme traz. É como se você fosse pisoteado por uma manada faminta. Quer o espectador goste ou não do filme, ele deixa um marco no inconsciente, retratando o uso de drogas (legais ou ilegais) de maneira clara, entregando tudo explicitamente. A película acerta ao trazer não o mundo underground, dos becos e bueiros, mas um mundo que poderia ser o de qualquer um.


A trama acompanha a jornada de quatro personagens. A primeira é Sara Goldfarb (Ellen Burstyn) , uma viúva que fica em êxtase ao ser convidada para participar de um programa de televisão. Ao receber o convite, ela fica obcecada por melhorar sua aparência. Dessa forma, para perder peso e caber em seu vestido preferido, ela começa a usar anfetaminas durante o dia em conjunto com sedativos à noite. Seu filho Harry (Jared Leto), viciado em heroína (palavra que não é citada uma única vez em toda a película), tem a “brilhante” ideia de revender drogas alterando sua qualidade junto com sua namorada Marion (Jennifer Connelly), que sonha em ser estilista, e seu melhor amigo Tyrone (Marlon Wayans).

Qual será o diferencial desse filme tão cultuado? Várias produções já discutiram essa temática, mas nenhum filme alcançou tal sucesso. Atribuo a perfeição atingida, que alçou Darren Aronofsky a outro patamar como cineasta, à trinca: montagem, roteiro e trilha.

O roteiro acerta ao apostar em poucos personagens, desenvolvendo-os ao máximo. Dentre os recursos narrativos que saltam aos olhos, figura a chamada hip hop montage ou fast cutting, que consiste em justapor planos curtíssimos com cortes frenéticos, no ritmo do pensamento dos personagens e do espectador. A técnica deriva da cultura do hip hop dos anos 90 e dos jump cuts da Nouvelle Vague francesa. O recurso funciona bem, pois é utilizado com fluidez e sem exageros, encaixando-se perfeitamente aos personagens e seus universos.


Não há como escrever sobre este filme sem citar a trilha sonora composta com maestria por Clint Mansell. Foi para esta película que foi criada a famosíssima música instrumental Lux Aeterna, que por si se tornou um clássico, um ícone. Ela é utilizada exaustivamente em trailers, games, publicidade e até em trabalhos escolares.

Ellen Burstyn, hoje com 80 anos, apresentou neste longa, certamente, a melhor atuação da sua carreira. Ela consegue ser ao mesmo tempo extremamente cativante e chocante. Ela representou plenamente a degradação física, psicológica e humana de sua personagem. É impossível não torcer por ela com cada célula de nossos corpos, é impossível não se sensibilizar e ficar se perguntando ininterruptamente: “Como essa mulher foi capaz de chegar a esse ponto?”. O espectador fica absurdamente inquieto. Ele envolve-se e identifica-se completamente.

E é dessa forma visceral que vê-se discutida a questão do papel do sonho na vida do ser humano. O sonho é o alimento dos personagens, é o que os mantém vivos, mesmo quando tudo está perdido. A busca por seus devaneios é o estado comum dos personagens, é o que os une. Imerso nesse contexto que está o uso de drogas fomentado pela solidão e pela concorrência voraz do mundo contemporâneo.


Parte 2: O réquiem

A palavra réquiem vem do latim, significa repouso, descanso. Em liturgia cristã, essa palavra representa a música encomendada para um falecido ou uma missa ou orações fúnebres. Réquiem. Réquiem para um sonho.

O diretor brinca com imagens para compor o drama dos personagens. Ele ambiciona posicionar o espectador diante do caos e da degradação de maneira plena. Não é um filme sobre drogas, sobre drogados ou sobre vícios. É um filme sobre seres humanos e as perdas que as drogas trazem. Pode ser um braço, a liberdade, o corpo, a consciência... Não é o tipo de droga que vai determinar a degradação. Mas é o desrespeito aos próprios limites e a própria sociedade, a grande distribuidora e divulgadora das verdadeiras drogas. As imagens desse longa não são facilmente aceitáveis, demora-se um tempo para digeri-las.


O roteiro se posiciona contra o efeito devastador das drogas, mas toma o cuidado de não julgar a validade da motivação das personagens. A falta de amparo deles, simbolicamente mostrada com a posição fetal que todos adotam em algum momento, perturba e desconforta o espectador.

Os quarenta últimos minutos são os mais assustadores, principalmente pela ausência de um deus ex machina. Assim, as pessoas solitárias que embarcaram nesse verdadeiro inferno estão irremediavelmente perdidas, e o cineasta é extremamente corajoso ao acompanhar suas trajetórias até o fim. Ele termina o que começou.

Além dos diálogos emocionantes, alguns recursos estilísticos fazem-se presentes de maneira incrível. Destaque para a tela dividida no primeiro ato, útil ao salientar que, apesar da proximidade física, Harry e Sara estão distantes, pois suas perspectivas e seus sonhos divergem. Aliado a isso, encontra-se o uso de lentes que deformam as extremidades da imagem, deixando-as arredondadas. Tal recurso evidencia as características do universo das personagens, um universo turvo.

Um drama realmente intenso é revelado em cada frame dessa obra, com pessoas que passam a sentir prazer mesmo quando ele vem acompanhado de dor. Essa produção se propõe a ser um retrato da nossa sociedade, e assim deve ser encarada. O que se vê é o desvirtuamento de valores, cenas intensas, e sonhos elevados por réquiens. Otimismos e pessimismos à parte, permita-se mergulhar no que o cinema pode proporcionar. Pense na sua própria existência. Amplie-se.


Por Bernardo Argollo

P.S.: Clique nos frames para ampliá-los.

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quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Artigo | O formato CinemaScope e a evolução das razões de aspecto na história do cinema


Nesse primeiro artigo, decidi falar sobre o formato que homenageei com o nome deste blog, e consequentemente sobre as razões de aspecto do cinema e sua evolução. CinemaScope foi uma tecnologia de captação e projeção criada pela 20th Century Fox e utilizada entre 1953 e 1963. O processo utiliza lentes anamórficas ao invés das esféricas (sobre as quais falarei posteriormente) e seu nome (CinemaScope ou simplesmente ‘Scope) acabou se tornando um jargão cinematográfico amplamente usado por produtores, projecionistas e críticos, se referindo, hoje em dia, às razões 2,35:1 ou 2,39:1.

Propaganda do filme The Robe (1953) e do formato CinemaScope.
Uma lente de captura anamórfica.












Uma breve explicação sobre razões de aspecto: como a imagem cinematográfica é limitada e bidimensional, ele é enquadrada num retângulo que precisa seguir uma proporção, essa proporção é a razão de aspecto. Em um filme de razão 1,33:1 (lê-se: 1,33 por 1), por exemplo, a largura do retângulo é 1,33 vezes maior que a altura. Embora o sistema de lentes do CinemaScope hoje esteja obsoleto, o formato criado por ele perdura até a contemporaneidade.


A evolução e o desenvolvimento das mais variadas razões de aspecto foi causada por um motivo análogo ao que fomenta o desenvolvimento da tecnologia e da linguagem 3D. No início da década de 50, Hollywood estava em pânico. A televisão crescia assustadoramente e o número de pessoas que ia ao cinema diminuía, juntamente com as ações antitruste do governo americano que abalavam a indústria cinematográfica. Era preciso apresentar algo novo, único, algo pelo qual valesse a pena sair de casa, que só o cinema oferecesse. Essa foi a época das produções caríssimas e suntuosas, das primeiras experiências com 3D, do som estereofônico e do advendo do widescreen (em português, tela larga). Tal mudança, adotada pela televisão há poucos anos (evidenciando o atraso desta em relação ao cinema), mudou para sempre a história do cinema, ampliando o campo de visão e as possibilidades da linguagem cinematográfica.

Frame de O Mágico de Oz (1939)
Observe o ganho de campo de visão em relação ao formato antigo.

Dificuldades técnicas determinaram o fim do 3D, mas não dos processos rivais Cinerama e CinemaScope (numa concorrência semelhante à do Blu-ray com o HD-DVD entre 2006 e 2008). O processo CinemaScope consistia basicamente no uso de uma lente anamórfica (palavra que vem do grego e significa “formado novamente”), que deformava a imagem de modo a fazê-la caber na película de aspecto 1,37:1 sem perda de área de registro (e de qualidade) que acontece no processo widescreen esférico, onde o filme é totalmente exposto na filmagem e é projetado com o uso de um anteparo que “corta” a imagem em cima e em baixo, para criar o efeito wide de acordo com o que o diretor quiser exibir. O CinemaScope permitia razões de até 2,66:1, praticamente o dobro da comum, mas na prática nem sempre foram utilizadas razões tão grandes para acomodar as trilhas de som. A criação do CinemaScope rendeu à Bausch & Lomb um Oscar em 1954.

 
Observe a diferença entre uma lente esférica (à esq.) e uma anamórfica (à dir.). A anamórfica deforma a imagem para aproveitar o espaço.

Na contemporaneidade as razões mais comuns são 1,66:1, comum na Europa, 1,78:1, utilizada nas atuais TVs de alta definição, 1,85:1, praticamente igual à anterior e muito comum no cinema americano. Mas o padrão de fato é a 2,35:1, amplamente utilizada pelos diretores. Obviamente, existem várias outras razões, mas as mais comuns e expressivas são as supracitadas.

Frame de Ben-Hur (1959) mostrando a razão de aspecto extremamente larga de 2,76:1.

Antigamente, a razão de aspecto utilizada pelo cinema era a mesma utilizada pela televisão, a 1,37:1 ou 1,33:1 (a diferença é imperceptível). Como praticamente todos os filmes feitos depois da década de 50 utilizam razões maiores, os filmes precisaram ser mutilados adaptados para “caber” na tela dos televisores. É uma pena que os espectadores médios não percebam o absurdo da prática. Felizmente, cortar os cantos da imagem é uma atitude cada vez menos comum no mercado de home video, mas ainda existente nas transmissões da TV.  Nem sempre é necessário fazer o letterboxing (adicionar barras pretas acima e abaixo da imagem), pois muitos filmes ainda são feitos em razões menores. É complicado dizer para uma pessoa que paga caro em uma TV que ela tem que abrir mão da uma parte da área da tela para ter a experiência adequada na maioria das produções atuais... Enfim, coisas da vida. Espero ter sido bem claro e didático.

Observe o quanto se perde em imagem ao se converter do formato 2,35:1 para o 1,33:1 ainda utilizado na TV aberta.

Por Bernardo Argollo

P.S.: Clique nas imagens para ampliá-las. ;)

As imagens aqui utilizadas estão livremente disponíveis na internet. Se você é dono de alguma delas e a quer ver retirada, entre em contato que a removerei.

The images shown here are freely available on the internet. If you are the owner and want them removed, please, contact me.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Crítica: Cisne Negro (2010)













“I just want to be perfect.”
“Perfect? I'm not perfect. I'm nothing.”
“I can't? I'm the Swan Queen, you're the one who never left the choral!”

Título original: Black Swan. Dirigido por: Darren Aronofsky. Produzido por: Ari Handel, Scott Franklin, Mike Medavoy, Arnold Messer, Brian Oliver. Roteiro de: Mark Heyman, Andres Heinz, John McLaughlin. Montado por: Andrew Weisblum. Fotografia de: Matthey Libatique. Estrelando: Natalie Portman, Vincent Cassel, Mila Kunis, Barbara Hershey, Winona Ryder.

Olhar-se no espelho e encarar o próprio semblante nem sempre é fácil. Nossos piores inimigos e nossos maiores aliados podem estar lá, revelando nosso “eu” enquanto nos contemplam com os mesmos olhos inquisidores que usamos para julgá-los. Assim, o cinema é um grande espelho, onde rimos e choramos por aqueles que sabemos não existir, mas cujas características muitas vezes encaixam-se perfeitamente à nossa realidade.


Em O Lago dos Cisnes, Odette é uma princesa condenada a viver como um cisne pelo feiticeiro Rothbart e apenas o amor verdadeiro pode encerrar a maldição. Após descobrir o interesse do príncipe Siegfried em casar com Odette, Rothbart transforma sua filha Odile em uma sósia da princesa, diferenciando-se desta somente por exibir vestes negras. Enganado, o príncipe se apaixona por Odile, fazendo com que Odette cometa suicídio e se liberte.

Ambientado no intrigante mundo do balé, Cisne Negro incorpora um tom realista, por vezes documental, ao retratar sem rodeios a parte menos glamourosa desse universo. Por trás de movimentos graciosos e bem executados, há o esforço físico e mental de artistas completamente dedicados à sua arte, que conhecem bem a alegria e a dor de serem o que são. É nesse contexto que Aronofsky apresenta a bailarina Nina (Portman), que sempre fora coadjuvante e ganha o papel principal numa adaptação visceral d’O Lago dos Cisnes (de Tchaikovsky), capitaneada pelo obsessivo Thomas (Cassel). Enquanto Nina é a perfeita encarnação de Odette, o Cisne Branco, com sua pureza atrelada a uma técnica meticulosa e irretocável, Lily (Kunis), uma bailarina recém-chegada à companhia, representa melhor do que ninguém Odile, o Cisne Negro. Lily possui a malícia e a sensualidade necessárias para o papel (e para seduzir o príncipe), sendo uma bailarina mais instintiva do que técnica, se deixando levar...


Assim como no ótimo O Lutador, Aronofsky rodou Cisne Negro em película de 16mm. Dessa maneira, vê-se na tela uma fotografia excessivamente granulada, que se torna perturbadora ao encaixar-se perfeitamente ao universo tortuoso, confuso, áspero e “sujo” da protagonista e seu inconsciente. Logo na primeira cena, nota-se o tom psicológico da narrativa, que apresenta sua personagem principal como uma bailarina de corpo e alma, obcecada pela perfeição. Nada disso seria possível sem a atuação indescritível da israelense Natalie Portman, que naturalmente venceu o Oscar de Melhor Atriz. Ela emagreceu dez quilos para o papel e chegou a quebrar uma costela durante os ensaios.

A personalidade infantilizada de Nina, representada pela voz sussurrante, pelo quarto cor-de-rosa coberto de pelúcias, típico de uma pessoa absolutamente reprimida e insegura. Como as duas personagens opostas d’O Lago dos Cisnes são sempre interpretadas pela mesma bailarina, ela é induzida a se aventurar por caminhos obscuros e a descobrir sua sexualidade, à medida que incorpora o Cisne Negro. E ao descobrir-se como mulher, acompanha-se a conseqüente destruição da doce e recalcada Nina, que se entrega à insanidade. Não discutirei a forte teoria existente entre nós críticos, de que ela seria vítima de abusos sexuais por parte de sua mãe, embora eu acredite que faça sentido.


Incapaz de suportar a pressão do mundo competitivo do balé e desgastada emocionalmente, Nina entra num processo de insanidade gradual, começando com coisas simples como reflexos nos espelhos e em outras superfícies. O espectador é levado a acreditar que ela está sendo perseguida por Lily, que supostamente deseja substituí-la, possuindo todas as características que faltam à rival, entre elas a capacidade de se deixar levar pela dança, sem se ater excessivamente à técnica, requisito fundamental a qualquer dançarina sedutora. Além de apresentar uma imponência que contrasta com a magreza e fragilidade de Nina, possui asas negras tatuadas às costas.



Entre as incríveis atuações, destaque para o francês Vincent Cassel na pele de Thomas Leroy e para Barbara Hershey na pele de Erica, a mãe da protagonista. Mas quem realmente salta aos olhos é Winona Ryder, que interpreta a bailarina decadente Beth (a quem o papel de Odette e Odile pertencera), alguém cuja perda da identidade é simbolizada pela destruição de sua própria face em virtude de sua decaída natural com o avanço implacável da idade.

O design de som acerta por combinar elementos diegéticos e narrativos na composição da tumultuada conjuntura interior de Nina. Os efeitos visuais também são incríveis, incorporando-se de forma fluida e orgânica ao processo. Dessa maneira, cumprem seu objetivo com perfeição, pois o espectador médio não é capaz de precisar o que é e o que não é artificial, de modo a se envolver ainda mais na história.


Natalie Portman deixa bem marcada a incompetência de sua personagem em personificar Odile, sendo reprimida, retraída e travada. Assim, o público se emociona ainda mais quando a vê dançando sensualmente e apaixonadamente no terceiro ato, quando até sua respiração lembra um ofegar quase que sexual.


A busca pela perfeição e suas consequências são temas recorrentes na filmografia de Aronofsky. Cisne Negro rivaliza em riqueza de ideias, portanto, com obras como Pi e Réquiem Para um Sonho. Os sacrifícios e as terríveis provações necessárias para ascender existencialmente sempre levam a uma conclusão emocionante e apoteótica. Mais do que uma obra que trata dos anseios mais íntimos e viscerais da psique humana, esta produção não se contenta com o lugar-comum e quer se superar a cada sequência. Atenção para a cena da boate, ela significa muito.

Explorando conceitos freudianos e situações intensas, esta película dificilmente será esquecida e é, certamente, um dos melhores filmes da década. Provavelmente nunca houve na história do cinema uma película que brincasse com espelhos de maneira tão inteligente e curiosa. E nessa brincadeira acompanha-se uma criatura inocente descobrir-se como um grande obstáculo à própria trajetória. E ao destruir quem está em seu caminho para alcançar libertação de uma existência vacilante, ela se torna capaz de seduzir o príncipe, a corte, a plateia e o mundo inteiro.


Por Bernardo Argollo

P.S.: Os frames estão em alta resolução, clique para ampliá-los.

Créditos dos frames: Site Blu-ray.com e Fox Searchlight.

All the frames used here belong to Blu-ray.com and Fox Searchlight.

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