“Home is now behind you. The world is ahead.”
Título original: The Hobbit – An Unexpected Journey. Dirigido
por: Peter Jackson. Produzido por: Carolynne Cunningham, Zane Weiner, Fran
Walsh, Peter Jackson. Roteiro de: Fran Walsh, Philippa Boyens, Peter Jackson,
Guillermo del Toro. Montado por: Jabez Olssen. Fotografia
de: Andrew Lesnie. Música de: Howard Shore. Estrelando: Martin Freeman, Ian McKellen, Richard
Armitage, James Nesbitt, Ken Stott, Cate Blanchett, Ian Holm, Christopher Lee, Hugo
Weaving, Andy Serkis, Manu Bennett.
Parte 1 – Uma Jornada Inesperada
Não
existem palavras para descrever a sensação de retornar à terra-média depois de
quase dez anos. A magnitude do universo é tanta que chega a mascarar os
defeitos de uma produção baseada em uma história um tanto simples e com pouca
informação para três filmes. O roteiro “convida” personagens, enxerta outros
(chega a criar um sub-vilão) e extende a história ao máximo na tentativa de
engrandecê-la. Mas tudo isso enfraquece diante da seguinte frase: é a
terra-média.
Baseado
em um livro de tom leve e inocente, o roteiro acompanha as aventuras de Bilbo
Bolseiro sessenta anos antes dos acontecimentos vistos em O Senhor dos Anéis. Juntamente com Gandalf e a companhia de Thorin
Escudo de Carvalho, Bilbo se envolve numa missão arriscada: recuperar a morada
e o tesouro dos anões, roubados pelo cruel dragão Smaug.
O
primeiro ponto que chama atenção na construção do roteiro é o excesso de anões.
Com exceção do príncipe Thorin e do ancião Balin, os anões são praticamente
iguais. A não ser pelas diferenças físicas, é impossível diferenciá-los. Eles
não tem personalidade alguma e não se desenvolvem enquanto personagens. Isso é
muito significativo, pois estamos falando de onze em um universo de treze.
Cortar cinco anões faria um bem imenso à narrativa, mas infelizmente a
ânsia de ser fiel ao livro (como se isso fosse uma coisa louvável) e de agradar
ao fãs acaba sendo prejudicial.
Por
outro lado, são tomadas liberdades criativas para melhorar a história e
torna-lá mais palatável ao público. Personagens como Saruman (Lee) e Galadriel
(Blanchett) são introduzidos na história de maneira conveniente e benéfica.
Apesar de terem sido criados depois da publicação do livro O Hobbit, em 1937,
eles na verdade fazem parte da história, apenas não são citados. O processo
criativo de Tolkien é complexo, com muitos aspectos pertinentes às histórias
sendo citados apenas em apêndices, por exemplo.
O
mago Radagast é um personagem bobo e dispensável, além de extremamente
caricato. Ele não acrescenta nada ao filme. Suas cenas sempre tendem para o
pastelão (a corrida no trenó de coelhos) e sua única ação significativa, que é alertar
sobre o Necromante que se instalou nas ruínas de Dol Gundur, poderia ser
executada por outro personagem sem grandes prejuízos.
Martin
Freeman está irretocável como Bilbo. Favorecido pela própria estrutura da
narrativa, ele constitui um personagem infinitamente mais interessante que
Frodo, protagonista de O Senhor dos Anéis.
Ao contrário da apatia e inocência do seu parente mais jovem, o Bilbo de Freeman sabe ser simpático, astuto, maldoso e carismático na medida certa.
Já
que o dragão Smaug praticamente inexiste nesse primeiro episódio, nada mais
adequado que criar um antagonista. Apesar de se tornar repetitivo e prejudicar
o ritmo da narrativa, o orc gigante Azog (que prejudicara anões em uma batalha)
é um interessante contraponto, na ausência do vilão principal. E falando em
criaturas digitais geradas por captação de movimentos, impossível não citar
Gollum. Em seu retorno à telona, a criatura está ainda mais impressionante que
em O Senhor dos Anéis, estando ainda
mais detalhada e expressiva (se é que isso é possível).
A
trilha sonora composta por Howard Shore é boa e funcional. Peca, contudo, por
ter seus melhores momentos justamente quando evoca os temas originais de O Senhor dos Anéis. A música cantada
pelos anões, ao contrário do que o trailer leva a supor, não acrescenta ao
filme e soa um tanto boboca.
Indeciso
entre o tom mais inocente da história original e o tom mais sombrio e urgente
de O Senhor dos Anéis, o diretor de
fotografia Andrew Lesnie alterna tons sombrios e cores vivas. É imperioso que
as duas sequências sejam mais constantes quanto à fotografia e sutis nas
mudanças. Resta-nos aguardar o próximo episódio sem medo de decepção. Afinal, esta
inexistirá. Pois trata-se da terra-média. Não há para onde correr. A magnitude
e a magia deste universo empalidecem quaisquer tropeços.
Parte 2 – Um Framerate
Inesperado
Muito
se fala sobre os 48 quadros por segundo adotados por Peter Jackson. Uma análise
real está além dos objetivos desse texto, pois além de incluir componentes
subjetivos exige que o leitor possua conhecimentos prévios de cinematografia,
estética e linguagem cinematográfica.
É
bem razoável dizer que a imagem chega a ser perturbadora de tão perfeita, sendo
possível ver cada poro, fio de barba ou cabelo e fibra das roupas. É natural,
contudo, que a tecnologia ainda precisa ser aprimorada. Alguns planos parecem
estar ligeiramente “acelerados” e alguns movimentos causam uma sensação de
estranhamento. As cenas de ação não apresentam um borrão sequer. É meio esquisito estar, literalmente, absorvendo o dobro
de informação por segundo. Assim como a linguagem 3D ainda engatinha, a nova
linguagem cinematográfica a 48 fps também está incipiente. Fico ansioso pra ver
o que um diretor como Martin Scorsese fará com o recurso.
Falando
em 3D, é triste constatar que Jackson não sabe usá-lo. Realmente, são poucos
que sabem. Revelando o mesmo desconhecimento de linguagem exibido por Tim Burton em Alice no País das Maravilhas, ele comete erros básicos como adotar uma profundidade de campo
pequena (deixar o fundo desfocado) em alguns planos, algo que não deve ser
feito em filmes tridimensionais, pois contraria a própria lógica do campo 3D. Como se não bastasse, ele abusa de elementos como
mudança rápida de foco (rack focus), como no
plano que mostra Gandalf e Galadriel. Em filmes tridimensionais tudo precisa
estar visível do primeiro ao último elemento. Isso permite que o cérebro do
espectador crie o foco, o que evita dores de cabeça.
Enfim,
estamos diante de uma nova estética, de um avanço técnico que culminará na
ascensão de uma nova linguagem e de uma nova fotografia e cinema. Só o tempo
revelará as verdadeiras implicações artísticas e se o formato perdurará.
Resta-nos rever nossos conceitos e, principalmente, não aceitar algumas ideias que
provavelmente começarão a surgir, como a de que filmes rodados a 24 quadros
sejam inferiores, por exemplo. Na contemporaneidade já é comum ouvir que filmes
em preto e branco são “chatos”. Tal consideração é equivocada e afasta as
atuais e futuras gerações de cinéfilos dos clássicos universais da Sétima Arte.
Por
Bernardo Argollo
P.S.:
Recomendo a leitura deste artigo, escrito pelo cineasta João Papa e publicado
no site do meu professor Pablo Villaça. É muito esclarecedor acerca das
implicações do novo formato, bem como explica todos os aspectos envolvidos de
maneira simples e didática. Fundamental para o leitor interessado em se
aprofundar.