(Obs.: Acho válido avisá-los que é o primeiro
texto que escrevo sobre um documentário.)
É impossível
dissertar sobre a história do Cinema sem ao menos citar a censura fílmica. Modernamente
conhecida como “classificação indicativa”, visto que perdeu seu caráter
proibitivo, é nada menos que a base da maioria das indústrias cinematográficas
atuais, definindo seus rumos de maneiras nem sempre claras. Além disso, traz à
tona a hipocrisia, o moralismo, a alienação e os preconceitos das sociedades.
Afim de analisar seus
efeitos em Hollywood, o genial documentarista Kirby Dick mergulha sem reservas
no mundo das classificação indicativas. Fazendo uma incrível investigação sobre
a natureza dos raters da MPAA (mais
sobre isso daqui a pouco), Dick discute a disparidade verificada entre as
classificações e o feedback dado aos filmes de grandes estúdios e às produções
independentes.
O sistema voluntário
(ninguém é obrigado a se submeter a ele) de classificação etária nos EUA
funciona da seguinte forma: o filme é submetido para análise da MPAA (Motion Picture Association of America, organização
que representa os seis maiores estúdios de Hollywood) através de uma comissão
composta por pais de família, e não de especialistas em comportamento infantil
ou qualquer coisa que o valha. As classificações são as seguintes:
- G (General) – Todas as idades admitidas;
- PG (Parental Guidance Suggested) – Todas as
idades são admitidas, mas os pais são aconselhados a acompanhar seus filhos;
- PG-13 (Parents Strongly Cautioned) – Nenhum
menor de 13 anos pode entrar no cinema sem os pais ou responsáveis;
- R (Restricted) – Nenhum menor de 17 anos
pode entrar sem acompanhamento dos pais ou responsáveis;
- NC-17 (No One 17 & Under Admitted) – Nenhum
menor de 17 anos admitido.
Não deixa de ser
notável o fato de, nos EUA, a classificação ser feita por uma organização
independente, e não pelo governo, como no Brasil. Dessa forma, o governo
americano nunca mais se intrometeu em nenhuma questão cinematográfica depois da
criação da MPAA. Coincidência ou não, a MPAA é composta pelos seis estúdios que
detém 95% do mercado de cinema nos EUA e fazem parte de conglomerados que controlam
90% da mídia dessa nação.
Dick tem a
sensibilidade de mostrar em seu documentário que a MPAA limita justamente
aqueles que mais buscam liberdade, os cineastas independentes, aqueles que
querem criar sua arte longe das amarras da cultura e dos grandes estúdios. O
sistema favorece justamente esses últimos, que quase sempre produzem obras que
já visam a uma determinada classificação que os possibilite alcançar o público
mais abrangente possível, e portanto, obter o lucro máximo. A hipocrisia da organização
é alarmante (“Você não precisa aceitar a classificação, não é obrigatória.”),
já que, se seu filme receber um NC-17, dificilmente alguém vai querer
distribuí-lo e muitos cinemas recusar-se-ão a fazer exibições. Nenhum estúdio
quer NC-17, ele limita o mercado. Mas qual a diferença entre um R e um NC-17?
O NC-17 lida com
aquilo que é pouco familiar ou desconhecido, assim como o chamado
“comportamento aberrante”. Não poderia haver exemplo melhor do que o citado
pelos realizadores durante o documentário, Bois
Don’t Cry. A obra recebeu um NC-17 por, entre outras coisas exibir cenas
contendo demorados orgasmos femininos. Sem falar em The Cooler, uma história de amor, sem promiscuidade, que recebeu o
título por mostrar os pelos pubianos de uma atriz. Já que a maioria dos filmes
são feitos por uma perspectiva masculina, um orgasmo feminino é considerado
ofensivo. Não é natural, é assustador. É a negação da mulher.
Falando nisso, qual
seria o limite entre um R e um NC-17? Alguns milhões de dólares e, talvez, até
dezenas. Já que foi ousado o suficiente para fazer tal provocação, Dick
inteligentemente comprova seus argumentos: não há um processo de treinamento ou
código que os raters devem utilizar,
o sistema é o único entre os de mais de 30 países que não revela quem faz juízo
sobre as obras (logo em Hollywood!), e a presidente da comissão (única rater conhecida do público) tem dois
filhos de 29 e 32 anos. Além disso, a instituição simplesmente dá uma
classificação para filmes independentes. Mas para filmes de estúdio, ela é bem
específica, no estilo “você precisa cortar esse plano, essa piada, essa fala,
aquela palavra e mudar aquele enquadramento pra conseguir o que deseja”. Assim,
grandes cineastas são forçados a mudar sua arte por pessoas que não vêm a
público para não serem pressionadas ou influenciadas, mas que, curiosamente,
discutem aspectos dos filmes com executivos dos estúdios.
O documentário conta
ainda com a participação de um ex-membro da Ratings
Department da MPAA (um dos dois únicos atualmente conhecidos), o que só
enriquece a abordagem. Apesar de sua rápida duração, pouco mais de uma hora e
meia, o roteiro ainda encontra tempo para discutir de maneira provocativa a
diferença entre filmes americanos e europeus na maneira de lidar com a
sexualidade. A MPAA se preocupa excessivamente com sexo, muito mais do que com
violência. A visão dos sistemas de classificação na Europa é diametralmente
oposta. Nela, o sexo é visto como parte da vida, e não como um tabu. Já nos
EUA, onde a violência dá altos lucros, um filme que mostra várias pessoas sendo
atingidas por tiros, desde que sem sangue, recebe um PG-13. Outros sistemas,
como o brasileiro, seguem a mesma tendência (o violentíssimo A Paixão de Cristo recebeu indicação
14). Outro caso emblemático é o do ótimo Psicopata
Americano, filme no qual a MPAA queria dar um NC-17 devido ao seu “tom”
(como se muda o “tom” de um filme?). De modo a garantir um R, a cena de sexo a
três, nada aberrante ou anormal, foi editada, mas a de assassinato e mutilação
com uma serra elétrica, não. Para que nós estamos treinando nossas crianças?
Só adultos tem
capacidade intelectual para compreender a violência caricatural e irreal (sem
sangue ou conseqüências), mas o sistema feito para proteger crianças por
adultos que agem como crianças se mostra incapaz de entender tal fato. Por
outro lado, Jersey Girl recebeu um R
devido a uma conversa onde a personagem de Liv Tyler afirma que se masturba regularmente.
Nada mais apropriado afinal, a lindíssima Liv (a elfa Arwen!) não pode se
masturbar, é um absurdo. Um dos representantes da MPAA disse, "não quero
que minha filha de 16 anos veja isso". Como se uma moça de 16 anos nunca
tivesse se masturbado... Isso reflete o falso moralismo de toda uma sociedade,
pois, como mostrado por Dick e sua incrível investigadora, se um filme como o
supracitado recebesse uma classificação “branda”, a MPAA começaria a receber
telefonemas, cartas, e-mails, etc.
Por fim, um
interessante e válido questionamento: será que a MPAA tenta controlar a
indústria por medo que o governo o faça? Vale a pena pensar sobre isso. Afinal,
o governo envolvido com arte quase nunca é um bom sinal. A credibilidade e os
efeitos dos sistemas de classificação e de censura cinematográfica nas mais
diversas culturas é imprescindível para a crítica especializada, por mais que
nós nunca levemos esses sistemas muito a sério e, vez por outra, fiquemos
espantados com algumas decisões deles.
Por Bernardo Argollo
P.S.: O doc não tem título em português. Considerem
o título do post, portanto, como uma adaptação necessária para não espantar
leitores monolíngues :)