domingo, 19 de maio de 2013

Crítica: Este Filme Ainda Não Foi Classificado (2006)













Título original: This Film is Not Yet Rated. Dirigido por: Kirby Dick.

(Obs.: Acho válido avisá-los que é o primeiro texto que escrevo sobre um documentário.)

É impossível dissertar sobre a história do Cinema sem ao menos citar a censura fílmica. Modernamente conhecida como “classificação indicativa”, visto que perdeu seu caráter proibitivo, é nada menos que a base da maioria das indústrias cinematográficas atuais, definindo seus rumos de maneiras nem sempre claras. Além disso, traz à tona a hipocrisia, o moralismo, a alienação e os preconceitos das sociedades.

Afim de analisar seus efeitos em Hollywood, o genial documentarista Kirby Dick mergulha sem reservas no mundo das classificação indicativas. Fazendo uma incrível investigação sobre a natureza dos raters da MPAA (mais sobre isso daqui a pouco), Dick discute a disparidade verificada entre as classificações e o feedback dado aos filmes de grandes estúdios e às produções independentes.

O sistema voluntário (ninguém é obrigado a se submeter a ele) de classificação etária nos EUA funciona da seguinte forma: o filme é submetido para análise da MPAA (Motion Picture Association of America, organização que representa os seis maiores estúdios de Hollywood) através de uma comissão composta por pais de família, e não de especialistas em comportamento infantil ou qualquer coisa que o valha. As classificações são as seguintes:

- G (General) – Todas as idades admitidas;
- PG (Parental Guidance Suggested) – Todas as idades são admitidas, mas os pais são aconselhados a acompanhar seus filhos;
- PG-13 (Parents Strongly Cautioned) – Nenhum menor de 13 anos pode entrar no cinema sem os pais ou responsáveis;
- R (Restricted) – Nenhum menor de 17 anos pode entrar sem acompanhamento dos pais ou responsáveis;
- NC-17 (No One 17 & Under Admitted) – Nenhum menor de 17 anos admitido.

Não deixa de ser notável o fato de, nos EUA, a classificação ser feita por uma organização independente, e não pelo governo, como no Brasil. Dessa forma, o governo americano nunca mais se intrometeu em nenhuma questão cinematográfica depois da criação da MPAA. Coincidência ou não, a MPAA é composta pelos seis estúdios que detém 95% do mercado de cinema nos EUA e fazem parte de conglomerados que controlam 90% da mídia dessa nação.

Dick tem a sensibilidade de mostrar em seu documentário que a MPAA limita justamente aqueles que mais buscam liberdade, os cineastas independentes, aqueles que querem criar sua arte longe das amarras da cultura e dos grandes estúdios. O sistema favorece justamente esses últimos, que quase sempre produzem obras que já visam a uma determinada classificação que os possibilite alcançar o público mais abrangente possível, e portanto, obter o lucro máximo. A hipocrisia da organização é alarmante (“Você não precisa aceitar a classificação, não é obrigatória.”), já que, se seu filme receber um NC-17, dificilmente alguém vai querer distribuí-lo e muitos cinemas recusar-se-ão a fazer exibições. Nenhum estúdio quer NC-17, ele limita o mercado. Mas qual a diferença entre um R e um NC-17?

O NC-17 lida com aquilo que é pouco familiar ou desconhecido, assim como o chamado “comportamento aberrante”. Não poderia haver exemplo melhor do que o citado pelos realizadores durante o documentário, Bois Don’t Cry. A obra recebeu um NC-17 por, entre outras coisas exibir cenas contendo demorados orgasmos femininos. Sem falar em The Cooler, uma história de amor, sem promiscuidade, que recebeu o título por mostrar os pelos pubianos de uma atriz. Já que a maioria dos filmes são feitos por uma perspectiva masculina, um orgasmo feminino é considerado ofensivo. Não é natural, é assustador. É a negação da mulher.

Falando nisso, qual seria o limite entre um R e um NC-17? Alguns milhões de dólares e, talvez, até dezenas. Já que foi ousado o suficiente para fazer tal provocação, Dick inteligentemente comprova seus argumentos: não há um processo de treinamento ou código que os raters devem utilizar, o sistema é o único entre os de mais de 30 países que não revela quem faz juízo sobre as obras (logo em Hollywood!), e a presidente da comissão (única rater conhecida do público) tem dois filhos de 29 e 32 anos. Além disso, a instituição simplesmente dá uma classificação para filmes independentes. Mas para filmes de estúdio, ela é bem específica, no estilo “você precisa cortar esse plano, essa piada, essa fala, aquela palavra e mudar aquele enquadramento pra conseguir o que deseja”. Assim, grandes cineastas são forçados a mudar sua arte por pessoas que não vêm a público para não serem pressionadas ou influenciadas, mas que, curiosamente, discutem aspectos dos filmes com executivos dos estúdios.

O documentário conta ainda com a participação de um ex-membro da Ratings Department da MPAA (um dos dois únicos atualmente conhecidos), o que só enriquece a abordagem. Apesar de sua rápida duração, pouco mais de uma hora e meia, o roteiro ainda encontra tempo para discutir de maneira provocativa a diferença entre filmes americanos e europeus na maneira de lidar com a sexualidade. A MPAA se preocupa excessivamente com sexo, muito mais do que com violência. A visão dos sistemas de classificação na Europa é diametralmente oposta. Nela, o sexo é visto como parte da vida, e não como um tabu. Já nos EUA, onde a violência dá altos lucros, um filme que mostra várias pessoas sendo atingidas por tiros, desde que sem sangue, recebe um PG-13. Outros sistemas, como o brasileiro, seguem a mesma tendência (o violentíssimo A Paixão de Cristo recebeu indicação 14). Outro caso emblemático é o do ótimo Psicopata Americano, filme no qual a MPAA queria dar um NC-17 devido ao seu “tom” (como se muda o “tom” de um filme?). De modo a garantir um R, a cena de sexo a três, nada aberrante ou anormal, foi editada, mas a de assassinato e mutilação com uma serra elétrica, não. Para que nós estamos treinando nossas crianças?

Só adultos tem capacidade intelectual para compreender a violência caricatural e irreal (sem sangue ou conseqüências), mas o sistema feito para proteger crianças por adultos que agem como crianças se mostra incapaz de entender tal fato. Por outro lado, Jersey Girl recebeu um R devido a uma conversa onde a personagem de Liv Tyler afirma que se masturba regularmente. Nada mais apropriado afinal, a lindíssima Liv (a elfa Arwen!) não pode se masturbar, é um absurdo. Um dos representantes da MPAA disse, "não quero que minha filha de 16 anos veja isso". Como se uma moça de 16 anos nunca tivesse se masturbado... Isso reflete o falso moralismo de toda uma sociedade, pois, como mostrado por Dick e sua incrível investigadora, se um filme como o supracitado recebesse uma classificação “branda”, a MPAA começaria a receber telefonemas, cartas, e-mails, etc.

Por fim, um interessante e válido questionamento: será que a MPAA tenta controlar a indústria por medo que o governo o faça? Vale a pena pensar sobre isso. Afinal, o governo envolvido com arte quase nunca é um bom sinal. A credibilidade e os efeitos dos sistemas de classificação e de censura cinematográfica nas mais diversas culturas é imprescindível para a crítica especializada, por mais que nós nunca levemos esses sistemas muito a sério e, vez por outra, fiquemos espantados com algumas decisões deles.

Por Bernardo Argollo

P.S.: O doc não tem título em português. Considerem o título do post, portanto, como uma adaptação necessária para não espantar leitores monolíngues :)

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Crítica: A Viagem de Chihiro (2001)













“Once you've met someone you never really forget them. It just takes a while for your memories to return.”

Título original: Sen to Chihiro no Kamikakushi. Dirigido e roteirizado por: Hayao Miyazaki. Produzido por: Toshio Suzuki. Estrelando (na versão japonesa): Rumi Hiiragi, Miyu Irino, Mari Natsuki, Bunta Sugawara.

Muitos dizem que animação é um gênero fílmico. Não é. Animação é uma técnica cinematográfica. Tal conceito, usualmente, faz com que produções baseadas no recurso sejam sempre associadas ao público infantil. Não que A Viagem de Chihiro não seja infantil, mas vai muito além de clichês como discussões rasas, moralismo barato, heroísmo fabricado, maniqueísmo, metáforas ridículas e diálogos que subestimam e inteligência da criança. Longe de ser um filme apenas bonitinho e engraçadinho para entreter crianças, esse longa propõe reflexões profundas.

Escrito pelo próprio Miyazaki (o maior animador do Japão, muitas vezes referido como “o Walt Disney japonês”), o roteiro acompanha a jornada de Chihiro, uma menina mimada e medrosa que se muda com seus pais para uma pequena cidade no interior do Japão. Ao pegar um caminho errado e parar na entrada de um túnel no meio de uma floresta, os pais de Chihiro decidem entrar para ver o que há do outro lado, para desespero da garota. Acreditando que acharam ruínas bem conservadas de um parque temático, os pais de Chihiro animam-se ao encontrar uma mesa repleta de guloseimas, e decidem experimentá-las. Enquanto isso, Chihiro decide explorar o local e depara-se com um misterioso garoto, Haku, que a alerta para que não permaneça ali depois do pôr-do-sol. Mas o aviso chega tarde, e a garota descobre que seus pais foram transformados em porcos e que o local é, na verdade, uma casa de banhos frequentada por deuses e espíritos. Agora, ela terá que se adaptar ao local, ao mesmo tempo em que tenta salvar seus pais e cumpre os desafios que lhe são apresentados.

É notável o amadurecimento da protagonista durante sua jornada por esse nova dimensão. Inicialmente uma criança chata e imatura, Chihiro é forçada a se adaptar a um universo hostil, numa belíssima metáfora da passagem da infância para a adolescência. Obrigada a enfrentar seus maiores temores, seu desenvolvimento emocional fica latente. Além de precisar arrumar um emprego para sobreviver, a garotinha quase tem seu nome completamente roubado pela bruxa Yubaba (a dona da casa de banhos). Assim, ela vê a necessidade de conservar seu nome, sua identidade. Uma casa de banhos traz a ideia de purificação, de limpeza, mas Chihiro não está lá para ser purificada, e sim para auxiliar na limpeza dos outros.

Exibindo o preciosismo técnico típico das obras de Miyazaki (observem a sutileza com que Chihiro troca a fita que amarra seus cabelos), o longa conta com uma galeria de personagens mágicos e fantásticos que, em meio a cenários grandiosos (e também opressivos e assustadores), envolvem-se em uma série de conflitos muito simbólicos. Destaque para o momento em que o espírito do rio vai banhar-se, e toda uma série de entulhos e porcarias sai de seu interior, evidenciando a forma com que a humanidade trata seus recursos hídricos, muitas vezes poluindo-os e assoreando-os para dar lugar a construções.

Valendo-se de forma magistral de signos interpretativos orientais, o longa não apresenta nada simples ou reconfortante. Ele trata de temas atuais e humanos de forma dura e complexa, mas sem perder o carisma. A transformação dos pais de Chihiro em porcos, interessante crítica do diretor à sociedade consumista e à gula, é só uma das inúmeras metáforas veiculadas.

Repleto de silêncios contemplativos e pausas, o roteiro ainda encontra tempo para trazer uma ousada mudança de foco, que só enriquece a narrativa. Em meio a tantos personagens, é esperado que o desenvolvimento de alguns acabe sendo prejudicado, o que infelizmente acontece com o Sem-Rosto, espírito que fica obcecado por Chihiro após esta ter sido gentil com ele e insiste em oferecer-lhe vários presentes, inclusive ouro. Jamais ficamos sabendo as suas reais motivações e propósitos.

Rica em detalhes, a animação não tem o aspecto plástico que algumas produções em CGI mal-acabadas (como os fracos Madagascar e O Espanta Tubarões) apresentam. Além disso, simula a profundidade de campo com uma competência incrível. Extremamente detalhista, a equipe compõe cenários memoráveis, como a enorme escada sem corrimão e detalhes incríveis como os reflexos no vidro do carro. Isso sem falar no trem com trilhos submersos.

Vencedor do Oscar de Melhor Animação em 2003 (pois foi lançado nos EUA em 2002), este filme infantil que pisca para outros públicos certamente deve ser incluído em qualquer antologia de maiores animações da história, ao lado de produções da Pixar e Disney. Assim como em Meu Amigo Totoro e Castelo no Céu, outras obras de Miyazaki, A Viagem de Chihiro vai além do lugar comum e se firma como um dos maiores clássicos japoneses.

Por Bernardo Argollo

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