quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Crítica: Incêndios (2010)













Dirigido por: Denis Villeneuve. Produzido por: Luc Déry, Kim McCraw. Roteiro de: Denis Villeneuve, Valérie Beaugrand-Champagne Estrelando: Lubna Azabal, Mélissa Désormeaux-Poulin, Maxim Gaudette, Rémy Girard.

Em certo momento de Incêndios, um experiente professor dá as boas-vindas à matemática pura dizendo que esta é “o reino da solidão”. E é dessa maneira que Denis Villeneuve (do perturbador Polytechnique) vê o Oriente Médio, uma terra de brutalidade, fanatismo e irracionalidade. Mesmo assim, o que se vê na tela é uma história inteligente, tocante e fundamentalmente humana, já que o diretor jamais toma partido e faz questão de deixar claros os prejuízos para todas as partes.

Baseado na peça homônima de Wadji Mouawad, o belíssimo (e coeso) roteiro acompanha os irmãos Jeanne e Simon Marwan, gêmeos que, após a morte da mãe, descobrem que possuem um irmão e que seu pai pode estar vivo. Jeanne, então, resolve mergulhar sem reservas no passado da genitora, partindo numa reveladora viagem com destino a um país não revelado (mas cujos acontecimentos são claramente inspirados no Líbano das últimas quatro décadas) no Oriente Médio. Ao passo que Jeanne se entrega totalmente em sua jornada, Simon se mostra relutante em desvendar o passado e cumprir com as disposições do testamento.


Construindo cuidadosamente sua história, os realizadores optam por erigir um universo carregado em melancolia, e o próprio design de produção da obra evidencia essa natureza soturna. Desde à sala de aula coberta por tons de branco vista no primeiro ato, totalmente drenada de cores, até os figurinos dos gêmeos, que quase sempre estão de cinza, a lógica visual do longa acerta por servir à trama, não constituindo um fim em si mesma. A direção de arte consegue ser evocativa ao alternar grandes paisagens bucólicas e habitações humildes, que aparecem manchadas por cinzas de um incêndio.


Desenrolando-se em duas linhas temporais, a narrativa jamais deixa o espectador confuso ou cai no erro de se tornar excessivamente episódica. O recurso é clichê, mas funciona. Usando o passado sempre que precisa explicar o presente, Villeneuve impregna sua obra de uma aura mítica e etérea típica das tragédias. As duas buscas paralelas, de Nawal por seu primeiro filho dado para adoção e a de Jeanne por seu pai e seu irmão, realçam a relação passado/presente.

Uma das muitas nuances da produção é a busca identitária por parte de filhos de imigrantes, que nasceram em outros países, que não falam a língua de seus antepassados e que não se identificam com sua cultura. Então, ao se perguntarem qual é sua verdadeira identidade, emerge o simbolismo dos incêndios, que só deixam cinzas, restos de algo que já se foi.

Bastante seguros sobre a história que pretendem contar, os produtores conseguem extrair o melhor do elenco. Lubna Azabal, intérprete de Nawal, consegue exprimir seus desesperos sem recorrer à diálogos. A sequência em que sua personagem é atacada no ônibus é extremamente comovente, e Azabal ilustra toda a complexidade do momento com apenas uma mudança de olhar. Só grandes atores são capazes de fazê-lo. Enquanto isso, Mélissa Désormeaux-Poulin se sente extremamente confortável como sua Jeanne, e merecia todos os prêmios de atuação só pela forma como reage ao questionamento feito pelo irmão no terceiro ato.

A presença de títulos que dividem o filme é completamente inútil e descartável. Além de não terem função alguma na narrativa (pois os espectadores podem se situar muito bem sem sua ajuda), os letreiros vermelhos quebram a bela continuidade visual da fotografia de André Turpin. Pior que isso, só os diálogos excessivamente fabricados do tabelião interpretado pelo ótimo Rémy Girard, personagem que é utilizado pelo roteiro apenas como recurso expositivo.

Incêndios ressignifica o mito de Édipo, da tragédia grega de Sófocles, ao revelar a identidade do pai e do irmão dos gêmeos. Assim, Villeneuve faz com que a trajetória de Nawal se confunda com o próprio momento histórico turbulento que vivenciou. Entre a viver em uma mentira e conviver com a verdade, ela opta pela paz contida nesta última. Criando uma narrativa universal que se encaixaria em qualquer região convulsionada do planeta, o cineasta consegue se estabelecer como um dos maiores achados do cinema canadense dos últimos anos.


Por Bernardo Argollo

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quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Crítica: Jogos Vorazes - Em Chamas (2013)













Dirigido por: Francis Lawrence. Produzido por: Nina Jacobson, Jon Kilik. Roteiro de: Michael Arndt, Simon Beaufoy. Estrelando: Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Liam Hemsworth, Elizabeth Banks, Phillip Seymour Hoffman, Sam Claflin.

Para a provável alegria de milhões de fãs histéricos, o segundo capítulo da franquia Jogos Vorazes parece mais preocupado com questões práticas do que em discutir as questões morais de se disputar um jogo que não passa de um massacre. E isso é bom.

Com a mesmíssima dinâmica do filme anterior, o roteiro acompanha as consequências com as quais Katniss Everdeen tem de lidar, depois do que fora forçada a fazer no primeiro longa. Acertando justamente por não compactuar com o pior defeito dos livros – serem narrados em primeira pessoa – o longa acompanha os vencedores da 74ª edição dos Jogos Vorazes durante uma turnê pelos 12 distritos controlados pela totalitária e luxuriante capital. Tornada símbolo de esperança para os desolados habitantes de Panem, Katniss descobre que será obrigada a participar do “Massacre Quaternário” onde ela terá, juntamente com outros vencedores do reality show, que lutar por sua sobrevivência e, é claro, sofrer ainda mais.

Eficiente em seus aspectos técnicos, o longa agrada (mas não impressiona) em sua direção de arte e efeitos especiais. Claramente óbvio em suas simbologias e metáforas, os realizadores não se preocupam com sutileza ao externar para seu público-alvo as entrelinhas da trama e de sua construção visual. Assim, não é necessário pensar muito ao ouvir os nomes de alguns personagens (Plutarch, que foi biógrafo de figuras como Marco Antônio e Cleópatra, é meu favorito), ao passo que o design de produção da Capital que, indubitavelmente moderna, não se intimida ao externar todo tipo de edifício acinzentado e anguloso, muito parecida, digamos, com uma certa capital de um majestoso império da antiguidade (fui sutil o suficiente?). O nome do país eu não vou nem comentar. Aliás, em que universo diegético esse Estado está situado? Como é sua relação com outros países e outros povos? A comunidade internacional (se é que há alguma) aceita e corrobora tudo que acontece? O resto do mundo também está dividido em distritos e controlado por outros presidentes ditatoriais? São algumas das muitas perguntas sem resposta presentes tanto no roteiro quanto no livro atarantado de Suzane Collins.

Sem subestimar em momento algum o impacto dos acontecimentos do primeiro filme, Em Chamas admiravelmente faz questão de mostrar que o fato de ter vencido os Jogos não alterou a dinâmica da vida de sua protagonista. Vivendo no mesmo mundo cinzento e melancólico, a moça, agora encarada como ameaça, mostra-se inteligente o suficiente para não se posicionar politicamente, sabendo que isto resultará em desastre. Perturbada pelo trauma dos Jogos, o longa agora faz com que o alcoolismo de Haymitch pareça bastante plausível, já que o universo cruel e opressivo de Panem atinge a todos, mesmo os vencedores.

Assim como no primeiro filme, este também é repleto de boas atuações e personagens interessantes. A excepcional Jennifer Lawrence parece ter entrado no piloto automático como Katniss, sempre interpretada no mesmo tom de tragédia e sofrimento. O sempre ótimo Phillip Seymour Hoffman é extremamente eficaz com seu Plutarch Heavensbee (dá pra imaginar outro ator interpretando o personagem mais dual da trama?), assustadoramente cheio de nuances para um coadjuvante de um blockbuster. Não é à toa que ele é amplamente considerado um dos melhores de Hollywood. O único destaque negativo reside na atuação de Josh Hutcherson. Inexpressivo como sempre, o ator recita suas falas sempre no mesmo tom monocórdico e parece acreditar que isso é suficiente para o crescimento de seu personagem. Não é.

Lançado em meio a um morno debate sobre suas denotações e conotações políticas – qual político atual representaria o presidente Snow? – Em Chamas possui uma narrativa fraca demais para justificar tal discussão. Os realizadores parecem mais preocupados com táticas de jogo e com os desvarios amorosos da protagonista. Ainda que o recurso aventado por Plutarch para prejudicar a imagem de Katniss seja interessante, bem como o fato desta não viver em função de seu triângulo amoroso (que jamais desvia muita atenção), todos os subtextos são óbvios demais. Mesmo assim vão passar muito acima da maior parte do público. Sim, há um viés politizado, há abuso de poder, há “pão e circo”, há sacrifícios pessoais, mas a incapacidade de raciocínio crítico de uma enorme porção da geração atual anula qualquer esforço da produção.

Incrivelmente eficiente em seus propósitos, mas longe de ser uma obra perfeita, Em Chamas é um pequeno milagre no esquema de produção de filmes teen de Hollywood. Francis Lawrence e o roteirista Michael Arndt (de Toy Story 3 e do futuro Star Wars VII) conduzem a narrativa com segurança, fazendo com que todos os recursos em suas mãos conduzam a um entretenimento para adolescentes que tem um mínimo significado. O que, por si só, já é um grande feito.

Por Bernardo Argollo

sábado, 16 de novembro de 2013

Crítica: Blue Jasmine (2013)













Dirigido por: Woody Allen. Produzido por: Letty Aronson. Roteiro de: Woody Allen. Estrelando: Cate Blanchett, Alec Baldwin, Sally Hawkings, Bobby Cannavale.

Surpreendentemente expondo a si mesmo ao fazer um estudo psicológico de sua personagem, Woody Allen retorna aos Estados Unidos depois de visitar a Europa em seus três últimos filmes. Ao mesmo tempo severo e compassivo, o cineasta conseguiu criar um drama envolvente com uma das criaturas mais desprezíveis e comoventes de sua filmografia. Expondo a realidade tragicômica da ruína dos especuladores financeiros durante a crise de 2008, Allen não se intimida com suas convicções.

Cate Blanchett (que me tirou o fôlego com a poderosa Elizabeth e a inesquecível Galadriel, de O Senhor dos Anéis) apresenta uma de suas melhores performances na pele da arrogante Jasmine que, nascida Jeanette, se reinventou como a esposa de um investidor bilionário. Em meio a joias, mansões e eventos, a socialite de repente vê-se na miséria desde que seu marido, Hal (Baldwin), foi preso por fraude (qualquer semelhança com o verídico Bernie Madoff não é mera coincidência). Assim, ela é obrigada a se mudar para São Francisco e viver com sua alegre, mas simples, irmã Ginger, por quem nunca dispensou muito apreço quando levava uma vida luxuosa. O longa acompanha todos os seus desesperos enquanto Jasmine resiste, inutilmente, à nova existência.

Acostumada a ser servida por todos e sempre exigindo a bondade alheia, Jasmine exibe todos os seus pontos fracos sem gerar, por um momento que seja, a antipatia que normalmente sentiríamos por uma figura como ela. Sim, é fato que trata-se de uma criatura que representa o cúmulo da arrogância, do esnobismo e que beira a alienação, mas há algo de inegavelmente tocante na maneira com que ela relata a história de sua vida, visto que pequenos incidentes aparentemente triviais de seu passado contribuem imensamente para que compreendamos sua visão de mundo, o que é importante para o longa.
O elenco é simplesmente primoroso, com todos encaixando-se perfeitamente aos seus papéis. Sally Hawkins interpreta Ginger com a economia necessária (vale ressaltar que as duas irmãs foram adotadas), ao passo que Alec Baldwin sente-se muito confortável com seu Hal, que é o próprio arquétipo do executivo sedutor. Mas é Blanchett quem realmente merece todos os prêmios, abraçando sua personagem com fragilidade e desespero, simplesmente entregando a melhor performance feminina em um filme de Woody Allen desde Diane Keaton em Annie Hall (1977).
O longa expõe de cara os desajustes emocionais de sua protagonista. Começando pelo monólogo, que ela acredita ser uma conversa, o que quase me fez pensar nela, por um momento, como uma versão feminina do próprio Woody Allen. Mas não, a história é sobre ela, que não está à beira da devastação total, pois já passou disso e não vislumbra nada que se encaixe em suas pretensões. De que adianta hospedar-se com a irmã, se seu namorado e seus amigos são tão mal-educados e seu apartamento é tão feio? De que vale se sujeitar ao trabalho de secretária num escritório de um dentista, se este emprego está tão abaixo dela?
Claramente inspirado em Uma Rua Chamada Pecado, o roteiro é recheado de flashbacks que visam esclarecer as circunstâncias que levaram a protagonista à sua conjuntura. Mesmo assim, consegue manter-se coeso e bem estruturado, ainda que não sejam necessários tantos retornos temporais para que possamos deduzir o que ocorreu. A estrutura funciona e justifica-se apenas pela sua “revelação” no terceiro ato.

Vendo apenas o quer ver, Jasmine, quando rica, não enxergava as traições do marido e agora, pobre, insiste em só ver os aspectos negativos da vida humilde da irmã. Essa é a sua maior tragédia. Allen e seu diretor de fotografia ilustram essa atitude organicamente através das cores quentes de Nova York e da paleta ligeiramente dessaturada de São Francisco. Mas é impossível não ter a impressão de que Allen corrobora suas ideias, ele está com ela (senão ela não seria a protagonista, ora!). São Francisco é um horror perto de Nova York e não ser rico é mesmo um porre. Assim, quando Jasmine chora de alívio ao receber a ligação de um pretendente, é impossível não se identificar, ao passo que o enquadramento à distância (em respeito) funciona perfeitamente.

Ainda que tenha lá seus momentos de comédia involuntária, Blue Jasmine chega ao fim com um plano desolador. Enquadrada em primeiríssimo plano, vemos a dedicação com a qual Woody Allen trata a sua musa, mais uma mulher desajustada entre tantas. Deve-se lembrar, porém, que nenhuma foi exposta com tanta convicção.


Por Bernardo Argollo

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Crítica: Elysium (2013)













Dirigido por: Neill Blomkamp. Produzido por: Neill Blomkamp, Bill Block. Roteiro de: Neill Blomkamp. Estrelando: Matt Damon, Jodie Foster, Sharlto Copley, Alice Braga, Diego Luna.

Eu não só sou um grande admirador de Distrito 9, como o considero uma das melhores ficções científicas já feitas. Louvável em seu desejo de proporcionar algo mais que puro entretenimento, o longa de 2009 foi feliz ao criar metáforas poderosas para temas como o apartheid e a tensão racial na África do Sul. Agora, Blomkamp parece ter se perdido em seu desejo irrefreável de fazer uma crítica social, resultando numa história vazia, esquemática e maniqueísta.

O roteiro se passa no distópico (ou utópico) ano de 2154 que, por coincidência ou não, é o mesmo ano em que Avatar se ambienta. Iniciado com uma constrangedora exposição, Blomkamp logo apresenta seu protagonista, Max. Devido à superpopulação, que drenou os recursos naturais e prejudicou a qualidade do ar, o governo e a elite se mudaram para a belíssima estação espacial Elysium, ao passo que os 99% restantes permaneceram na Terra. Quando Max sofre um acidente na indústria onde trabalha e descobre que só tem cinco dias de vida, só lhe resta tentar pegar carona numa das naves que tentam adentrar na estação, pois lá se encontra a única cura disponível.

Apostando numa alegoria óbvia para o problema da imigração que atinge os países desenvolvidos, Blomkamp acaba por ser reducionista, pois seu roteiro esquemático e maniqueísta ignora as incontáveis nuances do problema. Além disso, seus personagens são rasos e unidimensionais demais para permitir leituras mais profundas. Fica até parecendo que o mundo é feito de 99% de pobres coitados, vítimas do 1% de ricos malvados nazistas. Sim, é fácil relacionar a trama do filme com a realidade mundial e brasileira. Mas é só isso, nada mais.

Eficiente em seus aspectos técnicos, o projeto apresenta efeitos visuais impecáveis, e o design de produção é útil ao contrapor o esplendor de Elysium à miséria do favelão que se tornou Los Angeles. Por mais que a fotografia poderia ter sido um pouquinho mais destoante nos dois ambientes, os cenários são muito bem estabelecidos. Mais o que sobra no visual, falta no roteiro: ousadia e originalidade. Foi isso que transformou Distrito 9 num ícone.

O ótimo elenco se esforça, mas boicotado pelo péssimo roteiro e pela direção de Blomkamp, oferece performances apenas medíocres. Matt Damon se esforça em transformar seu Max numa figura tridimensional, ao passo que Alice Braga (que até hoje nunca deu motivos reais para desapontamentos) confere peso dramático à sua Frey. Wagner Moura, sempre caricato, não chega a ser ruim com sua atuação cheia de energia. Já Jodie Foster pouco pode fazer como a secretária de defesa Jessica Delacourt.

Inseguros sobre a história que querem contar, os realizadores dão uma resolução superficial e convencional ao embate entre excluídos e privilegiados. O mais lamentável de tudo é constatar que Elysium ainda encontra tempo para, no meio da projeção, substituir sua luta social pelo clichê do “herói que precisa salvar o mundo”. Aí já é demais.

Por Bernardo Argollo

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Crítica: Holy Motors (2012)













Dirigido por: Leos Carax. Produzido por: Martine Marignac, Albert Prévost, Maurice Tinchant. Roteiro de: Leos Carax. Estrelando: Denis Lavant, Édith Scob, Eva Mendes.

Reverenciando o Cinema por aquilo que faz dele uma arte, a reprodução mecânica, o cineasta francês Leos Carax declara seu amor a Sétima Arte e ressente-se pelo seu estado atual. Intenso e intrincado, o projeto parece suscitar naqueles que o assistem o desejo incessante de decifrá-lo, ler suas entrelinhas e entender suas idéias mais sutis. Mais do que um exercício narrativo extremamente satisfatório, Holy Motors é um profundo estudo sobre o ato de se representar a vida na arte.

O roteiro acompanha um dia de trabalho do Sr. Oscar (Lavant) e as estranhas situações que vive. Circulando por Paris numa luxuosa limusine comandada pela belíssima Celine (Scob), Oscar assume diferentes identidades. A natureza de sua profissão nunca é explicada, portanto, o espectador fica a imaginar a lógica daquele universo (mais sobre isso daqui a pouco), intrigado por figuras como uma mendiga, um assassino, um pai ressentido, um ancião no leito de morte, entre outros.

Contando com um prólogo muito simbólico, que mostra o próprio Carax saindo da cama e caminhando em direção a uma das paredes de seu quarto, forrada com um papel de parede que remete a uma floresta. Assim, seu dedo médio revela-se uma chave, e a porta que se abre dá em um cinema no qual todos os espectadores dormem, uma clara metáfora para o perfil do público atual, que se contenta com produções vazias. Dessa forma, fica claro que o foco do longa é justamente a experiência de mergulhar em um filme.


Lamentando a artificialidade do Cinema contemporâneo, o roteiro não se intimida ao trazer seu protagonista visitando uma verdadeira indústria de motion capture, que expõe o caráter industrial de muitos projetos. Repleto de elementos surrealistas e mensagens subliminares, Holy Motors comenta a profissão do ator, que salta de um personagem a outro enquanto reflete sobre sua própria existência, e Lavant ilustra isso com maestria ao criar um eficiente arco dramático para seu personagem, que vai ficando progressivamente cansado e frustrado.


Devolvendo o poder de mistério às imagens, que muito perderam sua capacidade de sugerir à medida que foram ficando ao alcance de todos, o projeto traz várias referência a clássicos do cinema francês. As referências aqui são como lembranças vagas, como no momento que traz, no desfecho da projeção, Édith Scob usando uma máscara que remete à Os Olhos Sem Rosto, filme que protagonizou. O longa ainda encontra tempo para lamentar a morte do celuloide e sua substituição gradativa pelo digital, e não é coincidência que a Kodak tenha pedido falência justamente em 2012.

Há, em Holy Motors, musical, ficção científica, tramas de assassinato... E se as lápides com inscrições de “visite meu website” já soam bastante distópicas, o que dizer da modelo cujas vestes se convertem numa burca? Outro bom momento é a aparição da cantora australiana Kylie Minogue. Se antes seu maior hit é utilizado como epíteto da imaturidade em uma certa cena, na sequência a vemos interpretando o maior clichê dos filmes musicais: uma canção emotiva em resposta a uma pergunta. A passagem é uma clara crítica às fórmulas prontas e tem um trágico desfecho.

Aberto a diversas interpretações e aplaudido de pé durante quinze minutos no Festival de Cannes em 2012, o projeto é também sobre a mis-en-scène, o ato de dispor elementos em cena e criar algo crível. Em certa altura, o protagonista, dono de uma expressão corporal irretocável e cujo próprio nome representa a aspiração máxima de todos que atuam no cinema, resume: só a “beleza do gesto” é suficiente. Assim, Holy Motors se revela descomplicado, como um país das maravilhas no qual podemos viver o que quisermos, filme após filme.


Por Bernardo Argollo

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sábado, 29 de junho de 2013

Crítica: Os Amantes Passageiros (2013)













Título original: Los Amantes Pasajeros. Dirigido por: Pedro Almodóvar. Produzido por: Agustín Almodóvar. Roteiro de: Pedro Almodóvar. Estrelando: Javier Cámara, Cecilia Roth, Lola Dueñas, Raúl Arévalo.

A comédia é, sem dúvida, um dos gêneros mais difíceis de analisar, pois algo que leva um espectador às gargalhadas pode provocar apenas indiferença em outro. Alguns acharão graça das piadas de Os Amantes Passageiros, outros não. Ao passo que alguns, mais audazes, ficarão consternados com esse retrocesso na carreira do, até então, sempre sensível e inteligente Almodóvar.

Se anteriormente seu estilo característico contribuía de maneira fundamental para o desenvolvimento da narrativa, desta vez parece que o cineasta se interessou apenas em manter suas marcas registradas, sem nenhuma preocupação em adequá-las às necessidades do projeto. Almodóvar, todavia,  parece achar que a força e a beleza de seu estilo serão suficientes para sustentar a obra, dispensando uma história minimamente coesa e envolvente.

Em meio às cores vivas, úteis no estabelecimento do tom geral da história, o roteiro acompanha um grupo de figuras excêntricas quando uma falha técnica no avião onde se encontram põe em risco a vida de todos. Com a catarse geral oriunda da situação, os personagens vão revelando seus segredos para esquecer a angústia do momento.

Não deixa de ser curioso o fato de um cineasta que costuma tratar a sexualidade com tanta delicadeza colocar em tela estereótipos tão absurdos, grosseiros e desrespeitosos acerca de homossexuais, sadomasoquistas e sul-americanos. Dessa forma, vemos apenas figuras arquetípicas e esquemáticas. Não ficamos sabendo, portanto, os motivos de suas ações, já que o roteiro jamais se preocupa com o desenvolvimento dos personagens. Escrito pelo próprio Almodóvar, o longa não explica, por exemplo, porque certo personagem cultua um altar Hindu, inserindo esse elemento apenas para satisfazer os desvarios do diretor. Dessa forma, Almodóvar se entrega a um exercício masturbatório de estilo. E se os planos inclinados e as escolhas de cor revelam-se perfeitamente adequados, não conseguem mascarar o péssimo roteiro. E se o plano que mostra a queda de um celular num local muito oportuno já foi deveras artificial, o que dizer do arco dramático criado para a personagem Bruna?

Ainda que o número musical seja engraçado, não parece ter outro propósito senão inflar o tempo de projeção, que já parece longo para seus 90 minutos. O apuro de linguagem esperado, entretanto está lá. Requintes como as setas que indicam visualmente a linha narrativa são interessantes e se incorporam de maneira orgânica às composições de quadro, apresentadas na sua típica razão de aspecto de Almodóvar (1,85:1), que foi mantida pela ótima projeção do Circuito Sala de Arte em Salvador.

Mesmo com todos os tropeços, é indubitável o poder deste cineasta para criar quadros que permanecem na mente do espectador, seja pela beleza ou ousadia. É impossível não citar, destarte, planos como o que mostra um casal se abraçando em meio à espuma, criando uma metáfora visual para a neve. Quase que dá pra esquecer as resoluções dos “conflitos”. Uma pena que isso se deva mais ao diretor de fotografia e ao designer de produção do que diretamente à Almodóvar, um cineasta que se esqueceu de como é talentoso.

Por Bernardo Argollo

Observação: atualizado em 04/07/2013

domingo, 9 de junho de 2013

Crítica: Corra Lola, Corra (1998)













 „Der Ball ist rund. Das Spiel dauert 90 Minuten.“

Título original: Lola Rennt. Dirigido por: Tom Tykwer. Produzido por: Stefan Arndt. Roteiro de: Tom Tykwer. Estrelando: Franka Potente, Moritz Bleibtreu.

Corra Lola, Corra é um filme, no mínimo, pouco usual. Diferente do estilo alemão tradicional e cercado de personagens carregados de problemas ou com fortes dilemas pessoais, a película do cineasta Tom Tyker não se intimida em ousar. Assim, vê-se uma narrativa envolvente mergulhada num estilo marcante e expressivo.

Mistura de Adrenalina e Morto ao Chegar, mas com um controle de ritmo superior, o roteiro acompanha a jornada de Lola, a filha de um bem-sucedido bancário. Extravagante em seu visual e “rebelde” em suas atitudes, a moça tem um namorado, digamos, encrenqueiro. Manni, interpretado pelo ótimo Moritz Bleibtreu, faz parte de uma quadrilha e carregava uma bela quantia de dinheiro do bando, que estava testando sua confiança. Após perder o dinheiro em um trem da cidade, o rapaz liga, desesperado, para sua namorada, que começa uma eletrizante corrida, tendo como objetivo conseguir 100.000 marcos em aproximadamente vinte minutos.


O roteiro inteligentíssimo inicia-se criando uma poderosa analogia entre sua narrativa e as fases de um video game, quando a frase que T.S. Elliot (que não revelarei) é substituída por um relógio implacável, marca visual da narrativa, e por uma animação que explicita o tom surreal daquilo que estamos prestes a assistir. A fusão entre os elementos funciona perfeitamente. Abordando com maestria a dinâmica das relações modernas, o roteiro ainda encontra tempo para incluir flashforwards mostrando o destino de certas pessoas que cruzam, ao acaso, o caminho da protagonista.

Sem dúvida o mais poderoso elemento temático da obra, o acaso, surge como mais que um mero produtor de acontecimentos. É simplesmente genial a forma com a qual os realizadores mostram que pequenas mudanças aleatórias de conduta podem acarretar significativas alterações no futuro. Tudo isso embalado por uma trilha tecno que estabelece o clima frenético. E se eu fizesse isso? E isso? E isso?

Em todos os três “episódios” Lola consegue o dinheiro e o deposita em bolsas. No primeiro, em bolsas vermelhas. No segundo, o dinheiro do assalto ao banco do pai é colocado em uma bolsa verde. No terceiro, o dinheiro do cassino é colocado numa bolsa amarela. É uma metáfora visual que utiliza as cores do semáforo: pare, siga e preste atenção. Ou seja, a primeira corrida é a corrida da insensatez, do desespero e da submissão, a segunda é a da atitude, do desafio e do enfrentamento. E, finalmente, a terceira corrida é a da inspiração divina e da atuação de forças sobrenaturais. O diretor dá uma pista de como devemos encarar cada episódio através das cores.

As escolhas de cor e a fotografia do incrível Frank Griebe não só estabelecem o clima da história e o estado de espírito dos personagens, como mergulham deixam o espectador tenso e ansioso. A cor vermelha se faz presente todo o tempo (desde o telefone que Lola atende no início da projeção até seus próprios cabelos), servindo como um verdadeiro combustível visual para a protagonista. Até que atinge seu ápice nas dream sequences, quando vemos Lola e Manni decidindo entre viver ou morrer em uma fotografia extremamente avermelhada. Quanto ao cabelo de Lola, é impossível vê-la correndo e não se lembrar de um portador da tocha olímpica.

A montagem, obviamente, é frenética e, assim como a fotografia, atira para todos os lados. Cortes secos, interpolações com animações, telas divididas, etc. Esse último recurso é útil ao confrontar o universo de Lola, vermelho em essência, com o de Manni, dominado pelo amarelo. A cabine telefônica de onde Manni faz sua derradeira ligação é amarela. Assim vemos dois personagens com aspirações e atitudes diferentes. Lola é quem vai atrás e Manni é quem fica parado esperando. Ele sabe que alguém resolverá as coisas para ele. Como diria a especialista em cores Patti Bellantoni, vermelho é a cor que te chama, o amarelo, por sua vez, é a cor que vai até você. Lola é provocada pelo vermelho, Manni é estagnado pelo conforto do amarelo.


A mais intrincada ideia que permeia a película é, contudo, a presença constante das espirais. Lola parece estar sofrendo um aprimoramento como ser humano, desde a sua morte trágica até o momento que, como um anjo, salva um homem numa ambulância com um simples toque. A cada episódio, Lola estaria num estágio superior como ser humano. Na maquiagem e fotografia, espirais são recorrentes. Na apresentação dos créditos, no início da cada corrida, no ornamento na porta de seu prédio. Até movimentos de câmera em espiral são realizados pelo diretor, como no plano onde a mãe de Lola fala ao telefone, onde um percurso em espiral transporta para a TV, que contém o plano em animação. Até o nome do prédio de onde se encontra a cabine telefônica de onde Manni liga para Lola é Spiralle.

Jovem clássico da história do Cinema, Corra Lola, Corra é um marco na história do cinema alemão e uma verdadeira revolução que influenciou muitas obras posteriores. A dupla Neveldine e Taylor que o diga.

Por Bernardo Argollo

OBS.: As duas referências a Vertigo, de Hitchcock, são divertidíssimas.

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domingo, 19 de maio de 2013

Crítica: Este Filme Ainda Não Foi Classificado (2006)













Título original: This Film is Not Yet Rated. Dirigido por: Kirby Dick.

(Obs.: Acho válido avisá-los que é o primeiro texto que escrevo sobre um documentário.)

É impossível dissertar sobre a história do Cinema sem ao menos citar a censura fílmica. Modernamente conhecida como “classificação indicativa”, visto que perdeu seu caráter proibitivo, é nada menos que a base da maioria das indústrias cinematográficas atuais, definindo seus rumos de maneiras nem sempre claras. Além disso, traz à tona a hipocrisia, o moralismo, a alienação e os preconceitos das sociedades.

Afim de analisar seus efeitos em Hollywood, o genial documentarista Kirby Dick mergulha sem reservas no mundo das classificação indicativas. Fazendo uma incrível investigação sobre a natureza dos raters da MPAA (mais sobre isso daqui a pouco), Dick discute a disparidade verificada entre as classificações e o feedback dado aos filmes de grandes estúdios e às produções independentes.

O sistema voluntário (ninguém é obrigado a se submeter a ele) de classificação etária nos EUA funciona da seguinte forma: o filme é submetido para análise da MPAA (Motion Picture Association of America, organização que representa os seis maiores estúdios de Hollywood) através de uma comissão composta por pais de família, e não de especialistas em comportamento infantil ou qualquer coisa que o valha. As classificações são as seguintes:

- G (General) – Todas as idades admitidas;
- PG (Parental Guidance Suggested) – Todas as idades são admitidas, mas os pais são aconselhados a acompanhar seus filhos;
- PG-13 (Parents Strongly Cautioned) – Nenhum menor de 13 anos pode entrar no cinema sem os pais ou responsáveis;
- R (Restricted) – Nenhum menor de 17 anos pode entrar sem acompanhamento dos pais ou responsáveis;
- NC-17 (No One 17 & Under Admitted) – Nenhum menor de 17 anos admitido.

Não deixa de ser notável o fato de, nos EUA, a classificação ser feita por uma organização independente, e não pelo governo, como no Brasil. Dessa forma, o governo americano nunca mais se intrometeu em nenhuma questão cinematográfica depois da criação da MPAA. Coincidência ou não, a MPAA é composta pelos seis estúdios que detém 95% do mercado de cinema nos EUA e fazem parte de conglomerados que controlam 90% da mídia dessa nação.

Dick tem a sensibilidade de mostrar em seu documentário que a MPAA limita justamente aqueles que mais buscam liberdade, os cineastas independentes, aqueles que querem criar sua arte longe das amarras da cultura e dos grandes estúdios. O sistema favorece justamente esses últimos, que quase sempre produzem obras que já visam a uma determinada classificação que os possibilite alcançar o público mais abrangente possível, e portanto, obter o lucro máximo. A hipocrisia da organização é alarmante (“Você não precisa aceitar a classificação, não é obrigatória.”), já que, se seu filme receber um NC-17, dificilmente alguém vai querer distribuí-lo e muitos cinemas recusar-se-ão a fazer exibições. Nenhum estúdio quer NC-17, ele limita o mercado. Mas qual a diferença entre um R e um NC-17?

O NC-17 lida com aquilo que é pouco familiar ou desconhecido, assim como o chamado “comportamento aberrante”. Não poderia haver exemplo melhor do que o citado pelos realizadores durante o documentário, Bois Don’t Cry. A obra recebeu um NC-17 por, entre outras coisas exibir cenas contendo demorados orgasmos femininos. Sem falar em The Cooler, uma história de amor, sem promiscuidade, que recebeu o título por mostrar os pelos pubianos de uma atriz. Já que a maioria dos filmes são feitos por uma perspectiva masculina, um orgasmo feminino é considerado ofensivo. Não é natural, é assustador. É a negação da mulher.

Falando nisso, qual seria o limite entre um R e um NC-17? Alguns milhões de dólares e, talvez, até dezenas. Já que foi ousado o suficiente para fazer tal provocação, Dick inteligentemente comprova seus argumentos: não há um processo de treinamento ou código que os raters devem utilizar, o sistema é o único entre os de mais de 30 países que não revela quem faz juízo sobre as obras (logo em Hollywood!), e a presidente da comissão (única rater conhecida do público) tem dois filhos de 29 e 32 anos. Além disso, a instituição simplesmente dá uma classificação para filmes independentes. Mas para filmes de estúdio, ela é bem específica, no estilo “você precisa cortar esse plano, essa piada, essa fala, aquela palavra e mudar aquele enquadramento pra conseguir o que deseja”. Assim, grandes cineastas são forçados a mudar sua arte por pessoas que não vêm a público para não serem pressionadas ou influenciadas, mas que, curiosamente, discutem aspectos dos filmes com executivos dos estúdios.

O documentário conta ainda com a participação de um ex-membro da Ratings Department da MPAA (um dos dois únicos atualmente conhecidos), o que só enriquece a abordagem. Apesar de sua rápida duração, pouco mais de uma hora e meia, o roteiro ainda encontra tempo para discutir de maneira provocativa a diferença entre filmes americanos e europeus na maneira de lidar com a sexualidade. A MPAA se preocupa excessivamente com sexo, muito mais do que com violência. A visão dos sistemas de classificação na Europa é diametralmente oposta. Nela, o sexo é visto como parte da vida, e não como um tabu. Já nos EUA, onde a violência dá altos lucros, um filme que mostra várias pessoas sendo atingidas por tiros, desde que sem sangue, recebe um PG-13. Outros sistemas, como o brasileiro, seguem a mesma tendência (o violentíssimo A Paixão de Cristo recebeu indicação 14). Outro caso emblemático é o do ótimo Psicopata Americano, filme no qual a MPAA queria dar um NC-17 devido ao seu “tom” (como se muda o “tom” de um filme?). De modo a garantir um R, a cena de sexo a três, nada aberrante ou anormal, foi editada, mas a de assassinato e mutilação com uma serra elétrica, não. Para que nós estamos treinando nossas crianças?

Só adultos tem capacidade intelectual para compreender a violência caricatural e irreal (sem sangue ou conseqüências), mas o sistema feito para proteger crianças por adultos que agem como crianças se mostra incapaz de entender tal fato. Por outro lado, Jersey Girl recebeu um R devido a uma conversa onde a personagem de Liv Tyler afirma que se masturba regularmente. Nada mais apropriado afinal, a lindíssima Liv (a elfa Arwen!) não pode se masturbar, é um absurdo. Um dos representantes da MPAA disse, "não quero que minha filha de 16 anos veja isso". Como se uma moça de 16 anos nunca tivesse se masturbado... Isso reflete o falso moralismo de toda uma sociedade, pois, como mostrado por Dick e sua incrível investigadora, se um filme como o supracitado recebesse uma classificação “branda”, a MPAA começaria a receber telefonemas, cartas, e-mails, etc.

Por fim, um interessante e válido questionamento: será que a MPAA tenta controlar a indústria por medo que o governo o faça? Vale a pena pensar sobre isso. Afinal, o governo envolvido com arte quase nunca é um bom sinal. A credibilidade e os efeitos dos sistemas de classificação e de censura cinematográfica nas mais diversas culturas é imprescindível para a crítica especializada, por mais que nós nunca levemos esses sistemas muito a sério e, vez por outra, fiquemos espantados com algumas decisões deles.

Por Bernardo Argollo

P.S.: O doc não tem título em português. Considerem o título do post, portanto, como uma adaptação necessária para não espantar leitores monolíngues :)

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Crítica: A Viagem de Chihiro (2001)













“Once you've met someone you never really forget them. It just takes a while for your memories to return.”

Título original: Sen to Chihiro no Kamikakushi. Dirigido e roteirizado por: Hayao Miyazaki. Produzido por: Toshio Suzuki. Estrelando (na versão japonesa): Rumi Hiiragi, Miyu Irino, Mari Natsuki, Bunta Sugawara.

Muitos dizem que animação é um gênero fílmico. Não é. Animação é uma técnica cinematográfica. Tal conceito, usualmente, faz com que produções baseadas no recurso sejam sempre associadas ao público infantil. Não que A Viagem de Chihiro não seja infantil, mas vai muito além de clichês como discussões rasas, moralismo barato, heroísmo fabricado, maniqueísmo, metáforas ridículas e diálogos que subestimam e inteligência da criança. Longe de ser um filme apenas bonitinho e engraçadinho para entreter crianças, esse longa propõe reflexões profundas.

Escrito pelo próprio Miyazaki (o maior animador do Japão, muitas vezes referido como “o Walt Disney japonês”), o roteiro acompanha a jornada de Chihiro, uma menina mimada e medrosa que se muda com seus pais para uma pequena cidade no interior do Japão. Ao pegar um caminho errado e parar na entrada de um túnel no meio de uma floresta, os pais de Chihiro decidem entrar para ver o que há do outro lado, para desespero da garota. Acreditando que acharam ruínas bem conservadas de um parque temático, os pais de Chihiro animam-se ao encontrar uma mesa repleta de guloseimas, e decidem experimentá-las. Enquanto isso, Chihiro decide explorar o local e depara-se com um misterioso garoto, Haku, que a alerta para que não permaneça ali depois do pôr-do-sol. Mas o aviso chega tarde, e a garota descobre que seus pais foram transformados em porcos e que o local é, na verdade, uma casa de banhos frequentada por deuses e espíritos. Agora, ela terá que se adaptar ao local, ao mesmo tempo em que tenta salvar seus pais e cumpre os desafios que lhe são apresentados.

É notável o amadurecimento da protagonista durante sua jornada por esse nova dimensão. Inicialmente uma criança chata e imatura, Chihiro é forçada a se adaptar a um universo hostil, numa belíssima metáfora da passagem da infância para a adolescência. Obrigada a enfrentar seus maiores temores, seu desenvolvimento emocional fica latente. Além de precisar arrumar um emprego para sobreviver, a garotinha quase tem seu nome completamente roubado pela bruxa Yubaba (a dona da casa de banhos). Assim, ela vê a necessidade de conservar seu nome, sua identidade. Uma casa de banhos traz a ideia de purificação, de limpeza, mas Chihiro não está lá para ser purificada, e sim para auxiliar na limpeza dos outros.

Exibindo o preciosismo técnico típico das obras de Miyazaki (observem a sutileza com que Chihiro troca a fita que amarra seus cabelos), o longa conta com uma galeria de personagens mágicos e fantásticos que, em meio a cenários grandiosos (e também opressivos e assustadores), envolvem-se em uma série de conflitos muito simbólicos. Destaque para o momento em que o espírito do rio vai banhar-se, e toda uma série de entulhos e porcarias sai de seu interior, evidenciando a forma com que a humanidade trata seus recursos hídricos, muitas vezes poluindo-os e assoreando-os para dar lugar a construções.

Valendo-se de forma magistral de signos interpretativos orientais, o longa não apresenta nada simples ou reconfortante. Ele trata de temas atuais e humanos de forma dura e complexa, mas sem perder o carisma. A transformação dos pais de Chihiro em porcos, interessante crítica do diretor à sociedade consumista e à gula, é só uma das inúmeras metáforas veiculadas.

Repleto de silêncios contemplativos e pausas, o roteiro ainda encontra tempo para trazer uma ousada mudança de foco, que só enriquece a narrativa. Em meio a tantos personagens, é esperado que o desenvolvimento de alguns acabe sendo prejudicado, o que infelizmente acontece com o Sem-Rosto, espírito que fica obcecado por Chihiro após esta ter sido gentil com ele e insiste em oferecer-lhe vários presentes, inclusive ouro. Jamais ficamos sabendo as suas reais motivações e propósitos.

Rica em detalhes, a animação não tem o aspecto plástico que algumas produções em CGI mal-acabadas (como os fracos Madagascar e O Espanta Tubarões) apresentam. Além disso, simula a profundidade de campo com uma competência incrível. Extremamente detalhista, a equipe compõe cenários memoráveis, como a enorme escada sem corrimão e detalhes incríveis como os reflexos no vidro do carro. Isso sem falar no trem com trilhos submersos.

Vencedor do Oscar de Melhor Animação em 2003 (pois foi lançado nos EUA em 2002), este filme infantil que pisca para outros públicos certamente deve ser incluído em qualquer antologia de maiores animações da história, ao lado de produções da Pixar e Disney. Assim como em Meu Amigo Totoro e Castelo no Céu, outras obras de Miyazaki, A Viagem de Chihiro vai além do lugar comum e se firma como um dos maiores clássicos japoneses.

Por Bernardo Argollo

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