Dirigido
por: Denis Villeneuve. Produzido por: Luc Déry, Kim McCraw. Roteiro de: Denis Villeneuve, Valérie Beaugrand-Champagne
Estrelando: Lubna Azabal, Mélissa
Désormeaux-Poulin, Maxim Gaudette, Rémy Girard.
Em certo momento de Incêndios,
um experiente professor dá as boas-vindas à matemática pura dizendo que esta é
“o reino da solidão”. E é dessa maneira que Denis Villeneuve (do perturbador Polytechnique) vê o Oriente Médio, uma
terra de brutalidade, fanatismo e irracionalidade. Mesmo assim, o que se vê na
tela é uma história inteligente, tocante e fundamentalmente humana, já que o
diretor jamais toma partido e faz questão de deixar claros os prejuízos para
todas as partes.
Baseado na peça homônima de Wadji Mouawad, o belíssimo (e coeso) roteiro
acompanha os irmãos Jeanne e Simon Marwan, gêmeos que, após a morte da mãe,
descobrem que possuem um irmão e que seu pai pode estar vivo. Jeanne, então,
resolve mergulhar sem reservas no passado da genitora, partindo numa reveladora
viagem com destino a um país não revelado (mas cujos acontecimentos são
claramente inspirados no Líbano das últimas quatro décadas) no Oriente Médio.
Ao passo que Jeanne se entrega totalmente em sua jornada, Simon se mostra relutante
em desvendar o passado e cumprir com as disposições do testamento.
Construindo cuidadosamente sua história, os realizadores optam por erigir
um universo carregado em melancolia, e o próprio design de produção da obra
evidencia essa natureza soturna. Desde à sala de aula coberta por tons de
branco vista no primeiro ato, totalmente drenada de cores, até os figurinos dos
gêmeos, que quase sempre estão de cinza, a lógica visual do longa acerta por
servir à trama, não constituindo um fim em si mesma. A direção de arte consegue
ser evocativa ao alternar grandes paisagens bucólicas e habitações humildes,
que aparecem manchadas por cinzas de um incêndio.
Desenrolando-se em duas linhas temporais, a narrativa jamais deixa o
espectador confuso ou cai no erro de se tornar excessivamente episódica. O
recurso é clichê, mas funciona. Usando o passado sempre que precisa explicar o
presente, Villeneuve impregna sua obra de uma aura mítica e etérea típica das
tragédias. As duas buscas paralelas, de Nawal por seu primeiro filho dado para
adoção e a de Jeanne por seu pai e seu irmão, realçam a relação
passado/presente.
Uma das muitas nuances da produção é a busca identitária por parte de
filhos de imigrantes, que nasceram em outros países, que não falam a língua de
seus antepassados e que não se identificam com sua cultura. Então, ao se
perguntarem qual é sua verdadeira identidade, emerge o simbolismo dos incêndios,
que só deixam cinzas, restos de algo que já se foi.
Bastante seguros sobre a história que pretendem contar, os produtores
conseguem extrair o melhor do elenco. Lubna Azabal, intérprete de Nawal,
consegue exprimir seus desesperos sem recorrer à diálogos. A sequência em que
sua personagem é atacada no ônibus é extremamente comovente, e Azabal ilustra
toda a complexidade do momento com apenas uma mudança de olhar. Só grandes atores
são capazes de fazê-lo. Enquanto isso, Mélissa Désormeaux-Poulin se sente
extremamente confortável como sua Jeanne, e merecia todos os prêmios de atuação
só pela forma como reage ao questionamento feito pelo irmão no terceiro ato.
A presença de títulos que dividem o filme é completamente inútil e
descartável. Além de não terem função alguma na narrativa (pois os espectadores
podem se situar muito bem sem sua ajuda), os letreiros vermelhos quebram a bela
continuidade visual da fotografia de André Turpin. Pior que isso, só os
diálogos excessivamente fabricados do tabelião interpretado pelo ótimo Rémy
Girard, personagem que é utilizado pelo roteiro apenas como recurso expositivo.
Incêndios ressignifica o mito de Édipo, da
tragédia grega de Sófocles, ao revelar a identidade do pai e do irmão dos
gêmeos. Assim, Villeneuve faz com que a trajetória de Nawal se confunda com o
próprio momento histórico turbulento que vivenciou. Entre a viver em uma
mentira e conviver com a verdade, ela opta pela paz contida nesta última. Criando
uma narrativa universal que se encaixaria em qualquer região convulsionada do
planeta, o cineasta consegue se estabelecer como um dos maiores achados do
cinema canadense dos últimos anos.
Por Bernardo Argollo
The frames used here belong to Blu-ray.com and Sony Pictures.