Reverenciando o Cinema por aquilo que faz dele uma arte, a reprodução
mecânica, o cineasta francês Leos Carax declara seu amor a Sétima Arte e
ressente-se pelo seu estado atual. Intenso e intrincado, o projeto parece
suscitar naqueles que o assistem o desejo incessante de decifrá-lo, ler suas
entrelinhas e entender suas idéias mais sutis. Mais do que um exercício
narrativo extremamente satisfatório, Holy
Motors é um profundo estudo sobre o ato de se representar a vida na arte.
O roteiro acompanha um dia de trabalho do Sr. Oscar (Lavant) e as estranhas
situações que vive. Circulando por Paris numa luxuosa limusine comandada pela
belíssima Celine (Scob), Oscar assume diferentes identidades. A natureza de sua
profissão nunca é explicada, portanto, o espectador fica a imaginar a lógica
daquele universo (mais sobre isso daqui a pouco), intrigado por figuras como
uma mendiga, um assassino, um pai ressentido, um ancião no leito de morte,
entre outros.
Contando com um prólogo muito simbólico, que mostra o próprio Carax saindo da
cama e caminhando em direção a uma das paredes de seu quarto, forrada com um
papel de parede que remete a uma floresta. Assim, seu dedo médio revela-se uma
chave, e a porta que se abre dá em um cinema no qual todos os espectadores
dormem, uma clara metáfora para o perfil do público atual, que se contenta com
produções vazias. Dessa forma, fica claro que o foco do longa é justamente a
experiência de mergulhar em um filme.
Lamentando a artificialidade do Cinema contemporâneo, o roteiro não se
intimida ao trazer seu protagonista visitando uma verdadeira indústria de motion capture, que expõe o caráter industrial
de muitos projetos. Repleto de elementos surrealistas e mensagens subliminares,
Holy Motors comenta a profissão do
ator, que salta de um personagem a outro enquanto reflete sobre sua própria
existência, e Lavant ilustra isso com maestria ao criar um eficiente arco
dramático para seu personagem, que vai ficando progressivamente cansado e
frustrado.
Devolvendo o poder de mistério às imagens, que muito perderam sua
capacidade de sugerir à medida que foram ficando ao alcance de todos, o projeto
traz várias referência a clássicos do cinema francês. As referências aqui são
como lembranças vagas, como no momento que traz, no desfecho da projeção, Édith
Scob usando uma máscara que remete à Os
Olhos Sem Rosto, filme que protagonizou. O longa ainda encontra tempo para
lamentar a morte do celuloide e sua substituição gradativa pelo digital, e
não é coincidência que a Kodak tenha pedido falência justamente em 2012.
Há, em Holy Motors, musical,
ficção científica, tramas de assassinato... E se as lápides com inscrições de “visite
meu website” já soam bastante distópicas, o que dizer da modelo cujas vestes se
convertem numa burca? Outro bom momento é a aparição da cantora australiana
Kylie Minogue. Se antes seu maior hit é utilizado como epíteto da imaturidade
em uma certa cena, na sequência a vemos interpretando o maior clichê dos filmes
musicais: uma canção emotiva em resposta a uma pergunta. A passagem é uma clara
crítica às fórmulas prontas e tem um trágico desfecho.
Aberto a diversas interpretações e aplaudido de pé durante quinze minutos
no Festival de Cannes em 2012, o projeto é também sobre a mis-en-scène, o ato de dispor elementos em cena e criar algo
crível. Em certa altura, o protagonista, dono de uma expressão corporal
irretocável e cujo próprio nome representa a aspiração máxima de todos que
atuam no cinema, resume: só a “beleza do gesto” é suficiente. Assim, Holy Motors se revela descomplicado,
como um país das maravilhas no qual podemos viver o que quisermos, filme após
filme.
Por Bernardo Argollo
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