Título
original: Sen to Chihiro no Kamikakushi. Dirigido e roteirizado por: Hayao
Miyazaki. Produzido por: Toshio Suzuki. Estrelando (na versão japonesa): Rumi
Hiiragi, Miyu Irino, Mari Natsuki, Bunta Sugawara.
Muitos dizem que animação é
um gênero fílmico. Não é. Animação é uma técnica cinematográfica. Tal conceito,
usualmente, faz com que produções baseadas no recurso sejam sempre associadas
ao público infantil. Não que A Viagem de
Chihiro não seja infantil, mas vai muito além de clichês como discussões
rasas, moralismo barato, heroísmo fabricado, maniqueísmo, metáforas ridículas e
diálogos que subestimam e inteligência da criança. Longe de ser um filme apenas
bonitinho e engraçadinho para entreter crianças, esse longa propõe reflexões
profundas.
Escrito pelo próprio
Miyazaki (o maior animador do Japão, muitas vezes referido como “o Walt Disney
japonês”), o roteiro acompanha a jornada de Chihiro, uma menina mimada e
medrosa que se muda com seus pais para uma pequena cidade no interior do Japão.
Ao pegar um caminho errado e parar na entrada de um túnel no meio de uma
floresta, os pais de Chihiro decidem entrar para ver o que há do outro lado,
para desespero da garota. Acreditando que acharam ruínas bem conservadas de um
parque temático, os pais de Chihiro animam-se ao encontrar uma mesa repleta de
guloseimas, e decidem experimentá-las. Enquanto isso, Chihiro decide explorar o
local e depara-se com um misterioso garoto, Haku, que a alerta para que não
permaneça ali depois do pôr-do-sol. Mas o aviso chega tarde, e a garota
descobre que seus pais foram transformados em porcos e que o local é, na
verdade, uma casa de banhos frequentada por deuses e espíritos. Agora, ela terá
que se adaptar ao local, ao mesmo tempo em que tenta salvar seus pais e cumpre
os desafios que lhe são apresentados.
É notável o amadurecimento
da protagonista durante sua jornada por esse nova dimensão. Inicialmente uma
criança chata e imatura, Chihiro é forçada a se adaptar a um universo hostil,
numa belíssima metáfora da passagem da infância para a adolescência. Obrigada a
enfrentar seus maiores temores, seu desenvolvimento emocional fica latente.
Além de precisar arrumar um emprego para sobreviver, a garotinha quase tem seu
nome completamente roubado pela bruxa Yubaba (a dona da casa de banhos). Assim,
ela vê a necessidade de conservar seu nome, sua identidade. Uma casa de banhos
traz a ideia de purificação, de limpeza, mas Chihiro não está lá para ser
purificada, e sim para auxiliar na limpeza dos outros.
Exibindo o preciosismo
técnico típico das obras de Miyazaki (observem a sutileza com que Chihiro troca
a fita que amarra seus cabelos), o longa conta com uma galeria de personagens
mágicos e fantásticos que, em meio a cenários grandiosos (e também opressivos e
assustadores), envolvem-se em uma série de conflitos muito simbólicos. Destaque
para o momento em que o espírito do rio vai banhar-se, e toda uma série de
entulhos e porcarias sai de seu interior, evidenciando a forma com que a
humanidade trata seus recursos hídricos, muitas vezes poluindo-os e
assoreando-os para dar lugar a construções.
Valendo-se de forma
magistral de signos interpretativos orientais, o longa não apresenta nada
simples ou reconfortante. Ele trata de temas atuais e humanos de forma dura e
complexa, mas sem perder o carisma. A transformação dos pais de Chihiro em
porcos, interessante crítica do diretor à sociedade consumista e à gula, é só
uma das inúmeras metáforas veiculadas.
Repleto de silêncios
contemplativos e pausas, o roteiro ainda encontra tempo para trazer uma ousada
mudança de foco, que só enriquece a narrativa. Em meio a tantos personagens, é
esperado que o desenvolvimento de alguns acabe sendo prejudicado, o que infelizmente
acontece com o Sem-Rosto, espírito que fica obcecado por Chihiro após esta ter
sido gentil com ele e insiste em oferecer-lhe vários presentes, inclusive ouro.
Jamais ficamos sabendo as suas reais motivações e propósitos.
Rica em detalhes, a animação
não tem o aspecto plástico que algumas produções em CGI mal-acabadas (como os
fracos Madagascar e O Espanta Tubarões) apresentam. Além
disso, simula a profundidade de campo com uma competência incrível.
Extremamente detalhista, a equipe compõe cenários memoráveis, como a enorme
escada sem corrimão e detalhes incríveis como os reflexos no vidro do carro.
Isso sem falar no trem com trilhos submersos.
Vencedor do Oscar de Melhor
Animação em 2003 (pois foi lançado nos EUA em 2002), este filme infantil que
pisca para outros públicos certamente deve ser incluído em qualquer antologia
de maiores animações da história, ao lado de produções da Pixar e Disney. Assim
como em Meu Amigo Totoro e Castelo no Céu, outras obras de
Miyazaki, A Viagem de Chihiro vai
além do lugar comum e se firma como um dos maiores clássicos japoneses.
Por Bernardo Argollo
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